Cineasta brasileiro de imenso prestígio internacional, Karim Aïnouz, atualmente, leva o brilho da exibição do mais recente filme, O marinheiro das montanhas, ao 74º Festival de Cannes (França). Dedicar a vida ao cinema desemboca no reconhecimento do ex-aluno dos corredores da Universidade de Brasília (UnB). Além da alegria, Karim conta que percebeu o convite para integrar a sessão especial de Cannes “como um presente bem-vindo”, quase tão emocionante quanto ver concluído o filme que traz memórias muito íntimas.
Celebrar conquistas, entretanto, não é algo que venha com facilidade, pelo que explica o diretor cearense. “Hoje, o que se vive no Brasil, em termos de produção audiovisual, é uma batalha bem dura, muito semelhante com a que vivi no começo dos anos 1990 (quando do fechamento da Embrafilme), mas com o agravante sinistro de estarmos sob a égide de um poder que relata seu profundo desprezo pela cultura e todos seus correlatos, sem o menor constrangimento”, avalia.
Na torcida para que brasileiros consigam retomar o futuro, Aïnouz aponta haver muito filme bom sendo feito a duras penas no Brasil, e completa que outros tantos poderiam surgir, com o devido estímulo e fomento. “Qualquer pessoa de boa fé sabe o valor e o poder da cultura; tentar aniquilá-la deliberadamente é criminoso, no mínimo”, nota. Constatando que o audiovisual oxigena, por meio da geração nova que desponta e tenta sobreviver, “nessa catástrofe que virou o nosso país”, Karim delimita que o elemento travado é o financiamento público, com proporções desastrosas. “O que travou foi o financiamento traduzido em novas chamadas/editais que assegurariam uma regularidade na produção, trariam organização no calendário da indústria e os processos dentro da Agência Nacional do Cinema (Ancine). Empecilhos que ele vislumbra contornáveis, a partir do futuro “voto com responsabilidade”.
Eleição premiada
Autor do longa-metragem pernambucano Curral, o diretor Marcelo Brennand viu acumularem os prêmios internacionais em festivais no Brooklyn (Estados Unidos) e em Huelva (Espanha), não tendo dúvidas quanto ao “poder de diplomacia” do cinema brasileiro. “Só nos últimos anos, o Festival de Berlim, que é o evento de cinema mais político do mundo, contou com a presença de 43 filmes brasileiros. Isso é um marco!”, avalia Brennand, irredutível na ideia que a política está enraizada na cultura brasileira. O cineasta demarca um traçado “de incerteza no governo federal” ao prospectar o cenário destinado à esfera da cultura. “São nos momentos de crise que surgem filmes e cineastas que retratam a realidade atual do nosso país no exterior”, acredita.
Defendendo uma visão humana, numa trama em que desponta o drama da falta de água no interior, Brennand evoca a máxima de Tolstoi (“Fale de sua aldeia e estará falando para o mundo”), para especular em torno do sucesso. “Curral foi selecionado, na França, para o Festival Cinema Brésilien Paris e tivemos o convite da vereadora parisiense Geneviève Garrigos para projetar no auditório da prefeitura de Paris”, celebra. Numa sessão privada, parlamentares locais tiveram contato com a fortuna crítica do cinema nacional.
Num contraste com tanto prestígio, Brennand crê que sua geração enfrenta um dos momentos mais críticos vivenciados por cineastas. “A situação da Cinemateca Brasileira representa o descaso do atual governo com a nossa cultura. Mas a história do cinema é de resistência. Passamos pela censura na ditadura militar e, na década de 1990, foi extinta a Embrafilme, maior fomentadora do cinema nacional, ou seja, foram quase quatro décadas de resistência e resiliência. Estávamos num momento de produção e criação extraordinário no Brasil. Por motivos políticos, hoje pouquíssimos projetos são aprovados na Ancine”, avalia o cineasta.
"Acho importante supervisionar e fiscalizar a forma como o dinheiro público é utilizado, mas isso não pode significar ou incorrer na paralisação do fomento dos setores culturais"
Gustavo Milan, diretor do curta Seiva bruta, premiado no Brooklyn Film Festival
Animação?
Premiado no mais importante festival de animação do mundo, em Annecy (França), o longa Bob Cuspe, nós não gostamos de gente, de Cesar Cabral, trouxe uma grata surpresa. “É um filme que gira no universo do cartunista Angeli, com narrativa que usa dados reais e ficção. O prêmio mostra que o filme comunica, independente do background que o espectador tenha”, observa Cabral, que se adianta em explicar: “O filme, assim como tudo que está sendo produzido no audiovisual, se tornou peça de resistência por uma questão de política imposta. Somos o reflexo de um governo anterior que valorizava a cultura brasileira”.
O protagonista do filme pode até desprezar pessoas, mas o diretor conta crer “num governo que goste de cultura e educação”. Ele diz que a animação brasileira cada vez mais se afirma no mercado internacional, tanto na perspectiva artística, quanto de produtividade técnica. Investindo no sofisticado processo de stop-motion, o segundo longa nacional com a técnica, Cabral pontua particularidades da animação no audiovisual e adianta um entrave na área. “A produção é muito mais lenta do que trabalhar com imagens em live-action, isso gera um panorama atual ainda estável; mas, na prática, os projetos de hoje foram iniciados dois, três anos atrás e os projetos futuros precisariam ser plantados agora. Dentro das políticas públicas, isto não está acontecendo”, lamenta.
Flechas certeiras
Receber o segundo prêmio mais importante do Festival de Berlim, conferido pelo público de um evento que teve mais de 800 filmes inscritos de países como Canadá, Estados Unidos, Japão, França, Alemanha e Coreia traz orgulho para Luiz Bolognesi (de A última floresta). Com baixíssimo orçamento, o documentário envolveu a diminuta equipe de cinco pessoas, e agradou ao integrar a Mostra Panorama do destacado festival alemão. Considerado ainda melhor filme no festival de Seul, o longa tem na rota internacional a presença em festivais na Nova Zelândia, Coreia, Espanha, Suíça e Itália, além de paradas para exibições no Canadá e Estados Unidos.
“A vitória em Berlim é para o cinema brasileiro, nesse momento que a gente tem um governo que tenta nos desqualificar, nos perseguir e paralisar a nossa produção. Trouxemos algo de extrema importância para a cinematografia brasileira: (o prêmio) mantém a gente à frente de um cinema forte, de qualidade e de competência. É relevante sair notícias no mundo todo de um cinema que encara um cenário de resistência e revela a luta de povos indígenas que estão sob forte ataque de um governo genocida e fascista”, demarca Bolognesi.
No Brasil, milhares de pessoas já acompanharam a narrativa selecionada para cinco festivais digitais no país, num sucesso nutrido tanto pelo tema quanto pela forma de abordagem. “A originalidade está na filmagem de mitos e sonhos, num documentário que tem ficção: os indígenas são atores e encenam situações —, há todo esse frescor. Os dispositivos narrativos acolhem a competência da arte que os próprios indígenas fizeram”, avalia Bolognesi. Nisso, houve aceitação casada entre o público mais sofisticado e os espectadores de filmes de entretenimento, como revela.
Duas perguntas // Luiz Bolognesi
O que trava a produção e como ela resiste?
Há realmente uma paralisação nos recursos da Ancine, daí a participação do cinema brasileiro no circuito ter diminuído muito no cinema de arte. Porém a gente tem coisas fortes acontecendo: a indústria de séries de VoD promovida por companhias estrangeiras e pela pela própria Globoplay tem absorvido uma quantidade enorme de novos talentos que estão pipocando. O resultado tem sido que as séries feitas no Brasil fazem sucesso até fora daqui; às vezes, mais do que dentro do Brasil. Há um mercado acontecendo na indústria de entretenimento, mas os produtos não são brasileiros e não são de autoria exatamente brasileira porque, apesar de ser escrito por brasileiros, há liderança de projetos por empresas estrangeiras. Quem manda são eles. De outro lado, a gente tem no cinema autoral uma polifonia de vozes surgindo Isso não parou: há uma quantidade muito grande de jovens cineastas indígenas fazendo curtas e documentários e videoclipes. No movimento afrodescendente de resistência, há quantidade enorme de roteiristas negros.
Há perseguição do cinema, na esfera do governo?
Há uma atitude de virulência com o objetivo de parar a produção da arte brasileira, mas eles serão derrotados pelos artistas. Em nenhum lugar do mundo, mesmo os com regime totalitário provisório, se conseguiu parar a arte. Aliás e a arte uma das ferramentas que consegue derrubar os regimes com viés totalitários. As ações que esse governo está fazendo para quebrar as pernas da ciência brasileira e da cultura brasileira não é desdém: é agressão, com ilegalidade e inconstitucionalidade. Dispositivos de distribuição de condições para se produzir audiovisual têm que ser afirmados com transparência e através de editais. Foi iniciado um controle, de um modo personalizado. Haverá questionamentos e atuação do Ministério Público. A paralisação da Agência Nacional de Cinema, que continua recebendo os recursos e captando, porque são recursos advindos da atividade do cinema (o grosso não vem do orçamento). Recursos que fomentam a Ancine vêm pela taxação sobre o próprio produto audiovisual, sobre as companhias de telefonia. Entra dinheiro na Ancine, que não é revertido para as produções! A agência tem a finalidade constitucional. Se recebe recursos e não repassa, denota desvio na finalidade. Há daí apropriação indébita. Não se causa apenas o mal de os nossos filmes não estarem saindo: há uma indústria que está se fragilizando.