Cinquenta anos de coleta de qualquer vestígio do fazer cinematográfico de Brasília passam, há 25 anos, pela Fundação Cinememória, administrada pelo diretor Vladimir Carvalho. "Lá virou um ponto de encontro: traz um acervo fotográfico e de documentação que sinaliza a ausência, na
capital da República, de uma cinemateca", observa o paraibano que doou para a UnB o material de organizado "cinematequeiro", ao lado de amigos do passado como Cosme Alves Netto, Carlos Augusto Calil e Rudá de Andrade. "Sinto, na pele, o que aconteceu, com o incêndio no galpão da Cinemateca Brasileira", pontua Vladimir, nome interligado a expressões como documentário, arquivo e memória nacional.
"Veio o arremate triste: é quase um ponto final na Cinemateca, por estar muito debilitada. Participei ativamente e de forma direta, sendo conselheiro, durante 20 anos. A cinemateca tinha
acompanhado a criação da Ancine (Agência Nacional do Cinema), com movimento muito positivo para o audiovisual. Nesse governo, a cinemateca ficou entregue às baratas. Foi um declínio súbito. Tudo sem gerência ou atividades", observa o diretor de filmes como O engenho de Zé Lins e Barra 68. Conterrâneos velhos de guerra (1992), filme que não viu duplicação de negativo, por falta de verba, tem todos os negativos arquivados na Cinemateca Brasileira. "Desde quinta-feira, estou sob essa tensão", conta o diretor, aos 86 anos.
"Por trabalhar com documentário sempre valorizei muito a questão do arquivo. Com o incêndio, não foram queimados filmes de ficção; muita coisa se perdeu do cotidiano filmado. A Cinemateca esteve a todo vapor, há cerca de três anos. Antes, a cinemateca vinha de uma renovação de material; lá dentro, parecia que você tinha acessado cenário de países centrais do mundo"
Vladimir Carvalho, cineasta
Para o cineasta brasiliense Marcelo Díaz, a perda com a Cinemateca é como uma morte na cultura brasileira. “Estamos literalmente, em luto profundo, porque isso é o ápice de uma política que infelizmente pretende todo esse nosso fazer simbólico, artístico e intelectual seja destruído”, afirma o diretor. Díaz ainda acredita que o fato conduza à mensagem. “Esse incêndio, metaforicamente, revela essa crueldade, essa falta de afeto e falta de amor para com o outro, para com a cultura, com a nossa identidade e nossa diversidade. Querem tolher, reduzir o Brasil a um ou outro caminho que certamente não é o Brasil”, pontua o diretor de Maria Luísa (2019).
O ativista da Cinemateca, Leandro Pardí, relatou nas redes sociais como foram os momentos de tensão durante o incêndio na Vila Leopoldina. Entre os relatos que deu, ele afirmou que a perda ainda é imensurável, apesar de pontuar que, com certeza, documentos, rolos de filmes de 35mm figurar no material perdido para o fogo.
Cercado de estudos junto a grupos ligados à memória fotográfica e audiovisual do país, o cineasta Paulo Caldas tem acompanhado pesquisas com vislumbre da migração para arquivos digitais. "Tenho, claro, master digitais dos meus filme, numa plataforma contemporânea, mas que ainda é arriscada. Fica em HD que, periodicamente, demandam cópias. O celuloide tem durado mais do que 100 anos. Com arquivos digitais não existe um vetor tão seguro quanto negativos de um filme estarem na Cinemateca Brasileira", conta o coautor de Baile perfumado (1996), histórico vencedor
do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro.
Paulo Caldas tem negativos de filmes depositados na Cinemateca, inclusive Baile perfumado (feito com Lírio Ferreira). "Agora, há desconfiança, um medo, um pânico. Minha preocupação se estende a todos os materiais que estão por lá. Não tem como fazer um juízo de importância, dizer que este material é mais importante do que aquele", observa. A preocupação ficou redobrada. "Quando você deposita material na cinemateca, vinha a ideia de segurança. Agora, inexistente", diz.
Com a desconfiança de que tenha se perdido, para além de documentos históricos da Embrafilme, do Arquivo do Instituto Nacional do Cinema (INC) e Concine (Conselho Nacional de Cinema), dados compilados pelo Tempo Glauber (dedicado ao autor de A idade da Terra), o diretor Joel Pizzini conta das medidas de reflexo do setor audiovisual. "Através do SOS Cinemateca coordenado pela Associação Paulista de Cineasta (Apaci) virão respostas mais contundentes ainda para evitar que esse filme de terror se repita e nosso patrimônio seja novamente vilipendiado. Tratam a Cinemateca como depósito e não como acervo vivo que reflete nossa identidade. Como realizadores, produtores e trabalhadores do audiovisual nos sentimos atingidos na alma por tanta omissão e desprezo pela função civilizadora da arte na construção de nossa nacionalidade", avalia o diretor de Anabazys (feito ao lado de Paloma Rocha) e de 500 almas, em torno de indígenas.
A cultura e em particular o cinema ê tratado em países como o EUA e em toda a Europa como questão estratégica, como artigo de primeira necessidade para expressar o caráter identitário dos povos, segundo experiências de Joel Pizzini. Ele completa: "Investe-se na preservação como forma de difundir a memória soberana que esclarece, ao contrário da mentalidade do atual desgoverno que aposta nas trevas para controlar e perpetuar-se no poder".
A postura dúbia dos governantes se cristaliza na ótica do estudante de cinema na UnB Pedro Henrique Chaves, diretor do curta Foguete, premiado internacionalmente. "Como estudante e jovem cineasta brasileiro me pergunto sobre aonde vamos chegar e tenho dúvidas sobre o futuro do nosso cinema”, observa. Para ele, o incidente é mais uma prova de negligência com que o cinema e a cultura estão sendo tratados no país. “É muito triste ver tudo isso acontecer, a destruição da cultura no Brasil precisa parar e o incêndio na Cinemateca foi só mais um episódio de descaso com nossa história”, acrescenta o cineasta.
* Estagiário sob a supervisão de Ricardo Daehn
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