A cidade dos ipês, da política e do rock também se destaca em outro cenário: o da literatura. Embora sejam diversos os desafios enfrentados pelos escritores, aos poucos os autores da capital federal conseguem alcançar o Brasil e o mundo. O processo é lento, começa já no desafio da página em branco. Mas, uma palavra de cada vez, os escritores ganham espaço para dar vida às suas histórias. O desafio seguinte é o da publicação e depois o de ser lido. E em um país com média de 2,6 livros lidos por ano — de acordo com dados da 5ª edição Retratos de Leituras do Brasil, do Instituto Pró-Livros —, não é à toa que Lygia Fagundes Telles chegou a citar em entrevistas: “leia-me, suplica o poeta, não me deixe morrer”. No entanto, aumentar esse índice não é tarefa fácil. O hábito de leitura é afetado pela desigualdade social (leia Palavra de Especialista). Por isso, no dia nacional do escritor, comemorado hoje, o Correio conversou com diversas vozes de destaque para debater como vai a produção no DF.
Apesar de todos os desafios que a profissão implica, Cinthia Kriemler decidiu, aos 50 anos, que seria escritora. “Quando completei essa idade eu queria um novo rumo, estava chegando perto de me aposentar e queria fazer algo que dependesse apenas de mim. E quando eu consegui escrever um conto em que o desfecho me deixou com dificuldades de respirar, percebi que era isso que eu desejava”, narra. Para Cinthia, sua literatura tem uma função obrigatória: incomodar. “Gosto de tratar de temas espinhosos, de mazelas sociais. Busco abordar sobre os assuntos que em geral as pessoas preferem fingir que não existem, assuntos invisíveis e submersos. Para mim, o texto sempre tem o viés de denúncia, de trazer reflexão, de tirar a sociedade do seu ponto de conforto”, explica.
O objetivo é alcançado em seu último livro de contos, publicado em 2020, O sêmem do rinoceronte branco. Inspirado em um fato, o conto que dá título ao livro aborda a morte, em 2018, do último rinoceronte-branco do norte. “Da extinção do Homem ainda não se sabe a data. Mas temos sido urgentes”, escreve a autora. Sobre o pouco reconhecimento dado aos autores da capital do país, Cinthia destaca: “Falta uma editora que entre no Centro-Oeste com atenção ao que é produzido aqui e aposte no trabalho dos escritores. Brasília sempre foi um caldeirão cultural muito poderoso, e na literatura tem grande potencial”, afirma.
A autora Fabiane Guimarães analisa o cenário atual de forma parecida. “Aos poucos, os escritores fora do eixo mais tradicional do Rio de Janeiro e de São Paulo têm ganhado visibilidade. E não apenas os autores de outras regiões, mas de outras raças, gêneros e orientações sexuais. O mercado, lentamente, está se abrindo para escritoras mulheres, por exemplo. E essa diversidade de olhares é muito positiva. Ainda temos um caminho a percorrer, mas estamos conquistando destaque”, frisa.
Persistência
Fabiane ressalta a importância de escrever sempre e se aprimorar. “Estou prestes a fazer 30 anos e escrevo desde os sete anos de idade. O mercado literário é muito difícil, mas chegou um momento que eu desisti de desistir. Tomei a decisão de que continuaria a escrever, mesmo que não desse em nada. Então, me inscrevi em diversos concursos e aos poucos foi dando certo”. Em fevereiro deste ano a escritora lançou o livro Apague a luz se for chorar pela editora Alfaguara.
“Visitei a FLIP (Festa Literária Internacional de Paraty) e lá tive a oportunidade de conversar com uma editora e apresentar meu manuscrito. Acho que é muito importante a pessoa entender que é um processo demorado, mas que ela deve aproveitar as oportunidades que surgem”, sugere. “Hoje existem vários caminhos para ser um escritor. Desde a autopublicação até a publicação independente, ou por meio dos concursos e dos textos divulgados em plataformas on-line. No fim, cada escritor vai trilhando o seu caminho”, complementa.
Eduardo Lacerda, editor da Patuá, avalia que, atualmente, o caminho para a publicação está mais fácil e barato. “O maior desafio vivido pela literatura é o de encontrar público leitor que valorize a obra, entendendo não a literatura, mas o suporte livro (impresso ou digital) como um produto que pode ser consumido, comprado e assim valorizado. O desafio dos escritores e editores é trabalhar pela formação de leitores, tanto pela criação de políticas públicas de incentivo ao livro, como de estímulos individuais”.
Para realizar a tão sonhada publicação, independentemente de qual formato, a dica do editor é a leitura. “Só pode ser um ótimo escritor quem ama a literatura. Muitas pessoas amam apenas a própria literatura. Mas ótimos escritores são apaixonados por livros e estão sempre em diálogo com outros profissionais. Também é importante não ter muita pressa. Publicar é cada vez mais fácil, mas a ansiedade prejudica a qualidade da obra. E embora a literatura e o mercado editorial sejam coisas absolutamente diferentes, conhecer como o mercado funciona ajuda”, pontua.
Brasília
Entre os escritores que se destacam na capital do país está José Almeida Júnior, ganhador do prêmio Sesc de Literatura de 2017 — seu livro de estreia foi o romance histórico Última Hora. “Comecei a escrever em 2012, mas não tinha nada publicado. No entanto, na minha primeira tentativa com o Sesc eu não consegui ganhar. Fiquei entre os finalistas, mas não fui contemplado. Então, eu escrevi um novo romance e me inscrevi de novo”, conta. O escritor detalha que na conquista de público-leitor as redes sociais tem sido uma boa aliada. “O Facebook, o Instagram e as outras mídias são muito importantes para o autor contemporâneo, muitos dos meus leitores vieram através das redes sociais. É uma forma de divulgar literatura e destacar o que está sendo comentado sobre o livro na grande mídia, por exemplo”. Ao Correio, José Almeida revelou alguns detalhes do projeto em que trabalha atualmente.
“Ele (o livro) está 60% concluído, pretendo finalizá-lo em 2022 ou 2023. Se passa no Brasil pré-golpe, de 1960 a 1964. O primeiro capítulo abre, inclusive, com a inauguração de Brasília, em abril de 1960. Quero trabalhar alguns personagens de ficção e alguns elementos históricos. E Brasília terá esse destaque, essa presença importante no livro”, explica. Mas não é apenas no projeto de José Almeida que a capital do país aparece como “personagem” em uma obra.
A escritora Paulliny Tort afirma a importância do DF para sua produção literária. “Estou trabalhando em um livro de doze contos ambientados em uma cidade fictícia do Planalto Central chamada Buriti Pequeno. E no livro, Brasília é uma personagem, um plano de fundo importante. "A capital aparece, muitas vezes em meus textos, como um centro nervoso. Não apenas a Brasília sempre destacada, mas outras regiões do Planalto Central. Meu primeiro livro, por exemplo, se passa em parte na Chapada dos Veadeiros. Acho que a história da capital em si e sua arquitetura particular, a dinâmica com o Planalto Central, fortalecem essa inspiração"”, detalha.
A escritora, no entanto, pontua: “o meio literário ainda tem um circuito muito fechado no Sudeste e no Sul do país. Nós do Centro-Oeste ainda ficamos em uma zona sombreada. Mas isso está mudando, muitos autores daqui vêm se destacando nos prêmios literários. Mas é importante o escritor não pensar só na premiação, porque publicar um livro envolve muitas coisas, como relação com os leitores e divulgação. O escritor deve, antes de tudo, focar no seu trabalho, na sua escrita e na história que ele pretende contar”, finaliza.
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