ARQUITETURA

Pesquisadora descobre e divulga acervo de projetos da arquiteta Lina Bo Bardi

Tese de doutorado da professora Maíra Teixeira fez um levantamento inédito da obra da arquiteta ítalo-brasileira que recentemente foi premiada em Veneza

» Severino Francisco
postado em 14/07/2021 06:00
Registro histórico de Lina Bo Bardi na escada da Casa de Vidro -  (crédito: Chico Albuquerque/Convenio Museu da Imagem e do Som - SP/Instituto Moreira Salles)
Registro histórico de Lina Bo Bardi na escada da Casa de Vidro - (crédito: Chico Albuquerque/Convenio Museu da Imagem e do Som - SP/Instituto Moreira Salles)

Na Casa de Vidro, que Lina Bo Bardi projetou e construiu no topo de um morro, no bairro Morumbi, em São Paulo, a integração entre arquitetura e natureza é tão intensa, que quem se acomodar na sala tem a sensação de estar em uma poltrona no meio de uma floresta. Já na casa desenhada para Valéria Cirell, também no Morumbi, Lina plantou uma bromélia em uma parede com a superfície de concreto e seixos. A conhecida casa do Chame-Chame, na capital da Bahia, tem por assinatura as paredes verdes, paredes vivas, que se misturam ao concreto. As três obras projetadas pela arquiteta ítalo-brasileira Lina Bo Bardi apresentam relações específicas com a paisagem em que foram construídas e exemplificam a singularidade que muitas vezes sobrepõe sua arquitetura e a arte.

A arquiteta que chegou ao Brasil em 1946, e seguiu ativa até o fim da vida, em 1992, é mais conhecida pela criação do Museu de Arte Moderna de São Paulo e pelo Sesc Pompéia, mas a verdade é que Lina possui uma produção mais ampla. Não criava a partir da prancheta, encerrada em uma torre de marfim. Sempre visitava os lugares dos projetos, observava o comportamento das pessoas e fazia inúmeras aquarelas e desenhos. Concebia projetos que interagiam com a natureza e com a cultura local.

O anúncio recente do Leão de Ouro da Bienal de Veneza de Arquitetura para Lina Bo Bardi surpreendeu muitas pessoas, mas não a professora Maíra Teixeira destacando que Lina é tão estudada quanto Oscar Niemeyer ou Lucio Costa. “Quem pesquisa a obra de Lina sabe que o prêmio veio tarde”, observa Maíra. Em 2014, ela apresentou a tese de doutorado As casas de Lina Bo Bardi e os sentidos do habitat, pela Universidade de Brasília e foi uma das agraciadas no Grande Prêmio UnB de Tese.

Quando iniciou o trabalho, Maíra se deparou com registro histórico de apenas 13 casas projetadas por Lina. Ao fim, a pesquisadora descobriu que esse conjunto era de 38 habitações, um acréscimo sensível para a história da mulher que transformou a arquitetura em arte no Brasil. Atualmente, Maíra é professora de arquitetura da Universidade Estadual de Goiás e cedeu uma parte do seu tempo para conversar com o Correio sobre a riqueza do legado de Lina Bo Bardi, uma italiana que se tornou uma das maiores arquitetas modernas e cuja obra reflete uma profunda interação com a cultura brasileira.

» Entrevista / Maíra Teixeira

Como é que Lina Bo Bardi, uma italiana, se transforma em uma arquiteta e uma artista brasileira?
Ela suja os pés, não capta o ambiente apenas com o olhar. Ela vai por inteiro. É atravessada pela cultura brasileira. Por que uma italiana conheceu tão profundamente o Brasil? Porque ela foi para o campo, para o lugar onde se encontrava o outro, o desconhecido, assim como foi para o campo durante a Segunda Guerra Mundial, quando estava na Itália. Saía do escritório e ia entrevistar as pessoas nas ruas para construir as matérias das revistas em que escrevia. Ela coloca o próprio corpo dela no lugar dos conflitos, das manifestações culturais e se deixava impregnar.

O que são singularidades das casas projetadas por Lina Bo Bardi?
Lina se formou em arquitetura em Roma, que era uma cidade monumental de características clássicas. Mas, quando se mudou para Milão, ela teve contato com uma arquitetura mais progressista. Foi influenciada por Gio Ponti, professor e editor de várias revistas. Lina começou a escrever artigos sobre o que é habitar e sobre o que é ser uma mulher moderna. Estavam surgindo as cozinhas industrializadas, de influência alemã. Então, ela desenhava casas com cozinhas mecanizadas, para que as mulheres não gastassem tanto tempo com os serviços domésticos e pudessem utilizar esse tempo com outras atividades. Ela imaginava a casa como um espaço de emancipação feminina. Outra singularidade é que os projetos das residências dialogavam muito com as características físicas e culturais do lugar. Na Casa de Vidro, que ela projetou no Morumbi, queria que o prédio interferisse o mínimo possível na topografia do terreno. Por isso, recorreu a pilotis muito finos.

Como se estabelece a relação da arquitetura de Lina com a natureza?
A natureza brasileira impressionou muito a Lina. Em cada região, ela optou por uma abordagem diferente. Ela fazia desenhos com a flora e com a fauna dos locais onde o projeto seria inserido. Lina tinha muito respeito pela natureza. Na Casa de Vidro, no Morumbi, ela mantém a topografia acidentada, a casa funciona como um mirante para a região. Antigamente, entrava mais sol no interior da casa; atualmente, a casa fica praticamente escondida pela mata. Na verdade, essa relação com a natureza está presente desde os desenhos que Lina fazia na adolescência. Ela já fazia casas envolvidas pela natureza. Depois, no Chame-Chame, ela vai projetar uma casa para um advogado, em que a própria vegetação cobre as paredes e muros de concreto. E, na casa de Valéria Cirell, ele planta bromélias em algumas paredes.

De que maneira se dá a interação de Lina com os lugares nos projetos de arquitetura?
Ela tem um olhar sensível ao lugar do ponto de vista natural, histórico e cultural. Quando vai fazer a casa do Chame-Chame, a pedido de um advogado de Salvador, adapta a proposta à topografia. Não é mais a leveza da casa de vidro; agora, ela fez uma casa opaca, pesada. Usou o concreto aparente, onde foram incrustados pedaços de boneca, de xícaras, numa referência aos ex-votos da cultura popular religiosa de Salvador. Faz a casa como um forte de Salvador, mergulhada nas referências da paisagem cultural. Ela vai além das referências imediatas do entorno. Nesse projeto, ela fala da cultura afro-brasileira e da arquitetura dos portos fortes, presente em Salvador.

Como é a relação de Lina com o modernismo carioca de Lucio Costa e Oscar Niemeyer?
Nos anos 1950, ela criticou o formalismo de Oscar Niemeyer e o distanciamento das demandas sociais. Lina tinha uma admiração enorme por Lucio Costa. Ambos trabalhavam com o patrimônio histórico. Vi uma entrevista em que Fernando Lara fez pergunta para Gilberto Gil: “Gil, você não acha que o Iphan deveria ser menos Lucio Costa e mais Lina Bo Bardi?”. A diferença é que Lucio sempre teve como referência a arquitetura colonial, enquanto Lina se interessava pela arquitetura popular do seringueiro, do ribeirinho e do sertanejo do interior do Nordeste. O universo das tradições construtivas populares serviu de matéria-prima para a concepção dos seus projetos, que interpretavam essas influências pelo prisma da modernidade.

Como fica o legado de Lina no Brasil?
Hoje, a Lina é mais reconhecida do que na época, antes ficava mais à margem. As circunstâncias políticas do regime militar afastaram Lina das grandes oportunidades. Parte dos parceiros da Lina estão dando continuidade a suas ideias. Marcelo Ferraz, Marcelo Suzuki, Francisco Vannuchi, entre outros. Marcelo Ferraz fez o Museu do Pão, no Rio Grande do Sul, o Museu Rodin, em Salvador, o Cais do Sertão, em Recife, a Praça das Artes, em São Paulo. Esses projetos são o resultado de intervenções em tecidos históricos e preexistências. A Praça das Artes está no tecido urbano antigo de São Paulo e se coloca em conexão com a cidade, de maneira a potencializar a vida cotidiana. Isso é legado da Lina. Ela começou a realizar esse tipo de proposição, quando praticamente ninguém fazia, aqui no Brasil, proposição que é resultado do entendimento amplo de Lina das diferentes camadas que compõem a paisagem urbana e das costuras dessa paisagem com suas dimensões histórica e cultural.

Poderia dar um exemplo desse tipo de intervenção arquitetônica?
O Sesc Pompéia encomendou o projeto a um arquiteto, que queria demolir todos os galpões. Então, chamaram Lina, que ficou impressionada com as estruturas de concreto dos galpões e com a vitalidade humana do lugar. As pessoas usavam o local para passear, tomar sorvete. Lina percebeu que o lugar não poderia perder a dinâmica que ele já tinha. Então, ela fez anotações, desenhos, aquarelas das pessoas caminhando, vivenciando o espaço, uma etnografia ilustrada. Era uma arquiteta-antropóloga, entendia o lugar para além dos aspectos físicos e materiais. Ela entendia a dinâmica da vida e a traduzia em seus projetos.

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