Climério Ferreira é apaixonado por um livro de Pablo Neruda intitulado Vinte poemas de amor e uma canção desesperada. Gosta dos poemas, mas gosta, sobretudo, do título. E queria fazer algo parecido. Juntou, então, uma boa leva de versos publicados no Facebook desde o início da pandemia e deu forma a Canções de amor & desespero, uma pequena homenagem a Neruda, mas, também, uma forma de celebrar sentimentos que vem compartilhando nas redes sociais.
Ele ainda não viu o livro, que sai pela Caravana Editorial, e já avisa que não haverá lançamento. Vacinado com as duas doses do imunizante contra a covid-19, Climério acha que ainda não é hora de reunir os amigos no Beirute. “Tanta gente morrendo”, lamenta. Mas ele já mobilizou algumas pessoas mais próximas para fazer uma corrente de distribuição do livro via entregas seguras e rápidas nas portarias dos respectivos prédios. “Escalei alguns amigos, dou um jeito de mandar para a casa deles ou um vem de máscara e pega na minha portaria. E cada um organiza um grupo e faz isso com os amigos”, explica.
Os poemas da nova publicação tratam de amor, mas Climério avisa que não é só isso. Ou melhor, não é só na forma romântica e prazerosa do sentimento, mas também em sua versão triste, desesperada. “O desespero porque algumas canções não são muito de amor, reclamam das coisas, da tristeza”, avisa. “Escrevo todo dia. Todo dia publico um poema no Facebook. Quando essa editora acenou com a possibilidade, eu quis fazer uma seleção dos poemas que tivesse alguma coisa a ver com a ideia desse livro do Neruda”, conta.
No total, são 100 poemas nascidos da observação do cotidiano, que acabou limitada com a pandemia. “Continuo produzindo como sempre fiz”, garante Climério. “São ideias que surgem e vou escrevendo. Algumas são quase crônicas de fatos que acontecem. Moro perto do ponto de ônibus, então vejo as coisas. Ou coisas que lembro, histórias, lembranças, outras poesias. Não especificamente me queixando da situação.” O poeta diz que evitou levar as angústias da pandemia para os versos do novo livro. Para essas, ele reserva um espaço no Facebook no qual publica frases com comentários sobre a situação atual. “A pandemia me visita muito”, diz.
Reflexão e tolerância
Mas é para o amor que ele quer olhar neste momento. “Acho que sempre precisamos de amor”, constata. “É uma frase besta, qualquer um diria, então eu digo. A gente precisa sempre, por isso gosto de escrever sobre essas coisas gerais, amor, sonho. No meu caso, também é muito necessária a reflexão sobre a situação do país, mas não faço só isso, porque senão a gente vira o Vandré da poesia. A situação se reflete indiretamente.” A postura política de Climério pode até transparecer em alguns versos e comentários, mas não afeta as amizades.
Aliás, talvez ele seja um dos poucos que não deixa que afete. Grande amigo e parceiro de Raimundo Fagner, ele admite divergências, assim como discordava, em algumas questões, de Dominguinhos, uma de suas mais férteis parcerias. “O Raimundo se aproximou da gente naturalmente, porque Clodo andou ganhando uns festivais que ele também ganhou e ele foi júri de uns festivais que o Clodo ganhou. E a gente ficou amigo. Eu continuo, mas não faço disso uma bandeira. Há uma discordância muito grande em relação às formas de ver a vida, mas não conversamos sobre isso. Do ponto de vista artístico, sou um admirador do jeito que ele faz as coisas, tanto dele como da voz”, avisa o poeta, ao se lembrar da participação em festivais ao lado do irmão, Clodo. “E Dominguinhos foi meu maior parceiro, um parceiro de convivência mesmo. Ele também tinha lá seu lance político. Mas Dominguinhos é aquele tipo que paira acima dessas confusões, uma pessoa humana incrível e isso, para mim, era fundamental.”
Dominguinhos morreu em julho de 2013, mas continua brotando na vida de Climério. Segundo ele, o sanfoneiro gravou muitas músicas fruto de parcerias da dupla antes de morrer. “E é engraçado porque continua aparecendo, e faz tempo que Dominguinhos morreu. Toda vez que encontrava com ele, dava um caderno de letras pra ele. Ele guardava e, quando pintava a chance, tacava uma sanfona em cima e fazia a música. Resultado: até hoje aparece parceria”, conta. O material ficava guardado para eventuais discos e, agora, volta e meia aparece alguém querendo gravar. Mas também aparece gente querendo gravar coisa antiga. Climério conta que outro dia recebeu um telefonema de Mariana Aydar pedindo permissão para fazer sua própria versão de Olhando o coração, gravada por Elba Ramalho no disco Do meu olhar. E, como Climério sempre faz, liberou a música para Mariana.
Serviço
Canções de Amor & Desespero, de Climério Ferreira. Caravana Editorial. R$ 35. caravanagrupoeditorial.com.br
ENQUANTO VOCÊ DORME
Enquanto você dorme
Eu cuido da paz universal
Não lhe permitirei nenhum pesadelo
Só a calmaria dos riachos
Com suas águas transparentes
E seus peixes coloridos
Navegará em seu sono
Velarei seus sonhos
Não deixarei que enredos esdrúxulos
Possam invadir seus suspiros
Enquanto você dorme
Desperto em devaneios
Dou aos meus pensamentos
Montagens de Godard
Em cenários chuvosos
Com direito a contrastes sombrios
De romance noir
Enquanto você dorme
A cidade desperta
Para seus pesadelos urbanos
A MORTE DE TODO DIA
Tudo morre um pouquinho todo dia:
Aquela ruazinha torta
Aquela casa da esquina
Aquela amizade de infância
Aquela canção inesquecível
Aquela atriz daquele filme
Aquele animal de estimação
Aquela gente da foto antiga
Aquele escritor imortal
Aquele amor eterno
Aqueles olhos verdes
Aquele desejo secreto
Aquela esperança de ficar rico
Aquele medo de morrer cedo
A única coisa que não morre
É essa morte que se morre todo dia
MINHA ALMA NÃO ME PESA
Acontece que a minha alma é leve
Habita a flutuação de um fato esquecido
Dança como uma saudade ao vento
Como uma frase em silêncio
Como um poema adormecido
Numa manhã de ressaca
Tem a consistência de uma tarde de solidão
Brilha como um olhar perdido
É uma ausência que se faz presente
Como o som de um instrumento desafinado
A minha alma é uma dúvida atroz
É impossível salvá-la da descrença
Permite ao meu corpo todos os pecados
Acho que ela morrerá comigo
EU SEREI PARA VOCÊ
Sou o que você quiser que eu seja
Para você serei até o que sou
Ou melhor: serei o que você não quer
Serei eu quem você desconhece
E que vai descobrir talvez tarde demais
Serei uma pista falsa
Uma nota fora do tom
Uma junção de consoantes
Algo impronunciável
Como um palavrão em russo
Uma paisagem trêmula do deserto
Serei por certo algo que não eu
Um péssimo design de mim
Serei para você uma incrível descoberta
O x do problema
A solução não proposta
Para você serei o oposto de mim
PENSAR DÓI
A rede do amor balança
No armador do desejo
E o punho da rede dança
Entre o carinho e o beijo
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