Agência Estado
postado em 09/07/2021 14:28 / atualizado em 09/07/2021 14:29
A consagração do filme Era Uma Vez Em... Hollywood (2019), vencedor dos Oscars de melhor ator coadjuvante (Brad Pitt) e melhor design de produção, incentivou seu diretor, o cineasta Quentin Tarantino, a realizar um sonho antigo: novelizar o próprio roteiro, ou seja, escrever um romance a partir da trama do filme. Fã desse tipo de literatura, ele trabalhou durante seis meses até finalizar Era Uma Vez Em Hollywood (agora, sem os três pontos), que a Intrínseca acaba de lançar.
Engana-se, porém, quem espera por uma simples transposição do roteiro para o texto escrito - Tarantino promoveu um "repensar completo" da trama, tornando-a mais melancólica e até um pouco mais oblíqua em seus significados. Ou seja, o cineasta expandiu o mundo do filme ao mesmo tempo que aproveitou para fazer comentários sobre ele. "Foi um repensar completo de toda a trama e não apenas o de buscar cenas que ficaram de fora, na edição", disse ele ao Estadão, em entrevista realizada por telefone nesta quinta, 8.
O que não falta, é verdade, é a grande profusão de citações de artistas de cinema e programas de TV que marcaram o final dos anos 1960, época em que é ambientada a história. E, no livro, Tarantino aproveita para explorar mais profundamente alguns personagens, além de alternar o foco da narrativa.
Assim, se no filme a expectativa é a chegada do fatídico dia 9 de agosto de 1969, quando a seita de jovens maníacos comandados por Charles Manson assassinou brutalmente a atriz Sharon Tate, no livro, o crime é mais um fato, pois o foco agora está no cowboy da TV Rick Dalton (representado, no cinema, por Leonardo DiCaprio) e seu melhor amigo e dublê, Cliff Cabine (Brad Pitt), ambos vivendo um momento de encruzilhada em suas carreiras, com os produtores preterindo-os por jovens galãs.
Como no filme, Rick e Cliff pulam de set em set, na busca por um papel decente, mas o leitor é brindado com mais detalhes sobre o nebuloso passado de Cliff - muito do que é apenas sugerido no longa ganha explicações na escrita, como as suspeitas de assassinato.
Antes, um aviso: a partir desse trecho, os spoilers serão constantes. Assim, descobre-se que Cliff não apenas matou dois mafiosos que o provocavam durante um almoço como também deu cabo da própria mulher, com um tiro de espingarda que, acredite, quase a dividiu em dois. Arrependido, Cliff a manteve viva durante sete horas, detalhe nada surpreendente na cartilha de violência explícita de Tarantino - mas ela não resistiu e morreu antes da chegada da Guarda Costeira.
O livro também traz mais detalhes de uma importante cena do filme, quando Cliff é desafiado por Bruce Lee, que se sente ofendido quando o dublê zomba dele por acreditar que era capaz de vencer Muhammad Ali em uma luta. Eles partem para briga e Cliff derrota o artista marcial, jogando-o contra um carro.
A leitura torna mais evidente a mentalidade movida a violência de Cliff e também sua esperteza, ao traçar uma estratégia para enganar o rival. A cena revivida no livro, aliás, despertou novas acusações, nesta semana, da filha de Lee, Shannon, que mais uma vez revelou seu descontentamento com a forma desrespeitosa como seu pai foi retratado no filme.
Já a figura do maníaco Charles Manson é mais detalhada na obra escrita, que revela sua tentativa de se tornar músico (uma de suas composições, aliás, chegou a integrar um disco dos Beach Boys) e de sua ação como cafetão.
Na inversão que promove na história escrita, Tarantino oferece um grande momento para Rick e Trudi Frazer, a precoce atriz de 8 anos que surpreende com uma bem embasada concepção do ato de representar. O livro se encerra com uma conversa telefônica entre eles: Trudi quer passar os diálogos que vão trocar na filmagem do dia seguinte, o que inicialmente não agrada a Rick. Mas o ensaio logo se torna um momento sublime, tornando o desiludido Rick em um homem um pouco mais esperançoso. A cena chegou a ser filmada, mas cortada na edição final, como Tarantino conta na seguinte entrevista.
O último capítulo do livro é muito tocante e até surpreendente, em relação ao filme.
É meu capítulo preferido e chegamos a rodar a cena. Foi emocionante, todos ficaram muito tocados. Brad ficou com os olhos marejados. Mas tive de cortá-la na edição, pois notei que criava uma falsa expectativa de que o filme estava acabando. Por isso decidi colocar como encerramento do livro.
Aliás, sobre sua nova carreira como romancista - quando você decidiu colocar suas ideias em um texto?
Era algo que senti que seria natural. Há anos que escrevo roteiros, o que me deu um aprendizado. Mas, quando terminei este, percebi que havia mais o que contar sobre Rick e Cliff, dois personagens fascinantes. E, como cresci lendo novelizações de filmes, algo que era comum nos anos 1970, sabia que aquele era o melhor caminho para apresentar essa dupla de forma mais expansiva e até com mais profundidade.
Você precisou fazer muita pesquisa para escrever o livro?
Até que não, pois embora eu tenha pretendido criar um novo produto, que estivesse um tanto afastado do filme, o ambiente é o mesmo, ou seja, a Hollywood do final dos anos 1960. E conheço muito bem os longas produzidos naquela época, os filmes B, as séries de TV. Percorri muito aquelas ruas de Los Angeles, assim, foi até mais fácil do que possa parecer.
Stephen King disse, em uma entrevista, que usou o método Tarantino para alcançar a tensão necessária em um diálogo que escreveu para a série Liseys Story. Como você cria diálogos?
Acho que esse é realmente o meu melhor dom, escrever diálogos. É algo que me vem muito fácil quando estou criando uma cena - basta saber um pouco da personalidade de cada um dos personagens que as falas surgem naturalmente.
Há quem diga que, quando Cliff fala mal de filmes estrangeiros, estamos escutando na verdade a voz de Tarantino. É verdade?
Olha (rindo), todo mundo me diz isso, e, claro, há opiniões dele que batem com as minhas (risos), mas tenho de dizer que ali é o pensamento de Riff, um homem que acompanhou o cinema americano produzido durante a 2ª Guerra Mundial, portanto escapista, em contraste com o cinema europeu do pós-guerra, com muitas cicatrizes. Isso o tornou um grande conhecedor cinematográfico e, portanto, um crítico criterioso, especialmente em relação a Hollywood.
Falando de Hollywood, o que você acha da disputa entre cinema e streaming?
Não sou fã de streaming, pois é um serviço que não consegue reproduzir a emoção de se assistir a um filme em uma tela grande. Mas sei que é uma forma de divertimento que veio para ficar.
Que recordações você guarda da sua passagem por São Paulo, em 1992, durante a Mostra de Cinema?
Olha, fui a diversos festivais em minha vida, mas aquele me marcou profundamente. Pude ver muitos filmes que me marcaram, fui a restaurantes que me encantaram, conheci pessoas muito interessantes. São Paulo realmente marcou minha vida.
E, por falar em vida, você realmente se despede do cinema depois de seu próximo filme, como prometeu?
É um assunto do qual todos gostam de falar (risos). Veja bem, a maioria dos cineastas dirige seus piores filmes no final da carreira. Encerrar uma trajetória com um filme decente é raro. É o que penso.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.
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