Distopias podem funcionar como um repertório simbólico para enxergarmos o mundo contemporâneo. É um pouco o que oferecem Joca Reiners Terron e Bernardo Carvalho em seus novos romances, O riso dos ratos e O último gozo do mundo, respectivamente. Duas das maiores vozes da literatura contemporânea — Carvalho ganhou os prêmios Oceanos, APCA e Jabuti; e Terron ganhou o Machado de Assis — eles se debruçam sobre personagens que refletem o desânimo com o Brasil contemporâneo.
Em O riso dos ratos, a história é narrada de trás para frente em uma cronologia sombria sempre pontuada pelo caos. Antes de se tornar um escravo em um território controlado por milícias que mantêm escravas sexuais e se alimentam de ratos, o protagonista é um sujeito de classe média que leva uma vida mais ou menos confortável até descobrir uma doença no fígado. À medida que a doença se espalha, a sociedade começa a desandar, e a dignidade se deteriora.
O novo romance de Joca Reiners Terron nasceu de uma situação pessoal, quando o autor enfrentava um problema de saúde e começou a escrever um diário. “Depois que passaram os meses, surgiu a ideia inicial do livro: alguém passando por um problema pessoal que ficasse tão obcecado por esse problema que não percebe que o mundo ao seu redor desmoronou”, conta.
Era 2012, Joca guardou o livro e veio retomá-lo apenas no ano passado. Ele tentou reescrever o diário, mas não gostou do tom e decidiu fazer um exercício para encontrar a voz do narrador: escreveu à mão. “E saiu com o tom que eu queria imprimir à narração. Escrever à mão é um problema. A gente se habituou a escrever digitando e, numa certa medida, isso já inclui um processo de revisão. Você escreve editando, eu só avanço quando estou satisfeito. À mão é diferente. As frases nasciam muito diretas, às vezes, ou muito óbvias”, conta.
O protagonista de O riso dos ratos é um sujeito retraído, introspectivo, com “um caráter saturnino”, na classificação de Joca. Sofre de uma sociofobia razoável e é pai de uma jovem vítima de abuso sexual. A moça nunca aparece, e o pai promete matar o estuprador em um ato de vingança do qual se alimenta e do qual sobrevive ao longo da narrativa. O plano nunca se concretiza, assim como o encontro com a filha que, tanto o leitor quanto o protagonista, não sabem se ainda vive.
Na jornada de busca pela moça e de execução da vingança, o personagem, que não tem nome, se embrenha por um país destroçado e vai parar em Futurama, um antigo supermercado transformado em gueto regido pela escravidão e pela lei violenta das milícias. Dali, ele empreende um caminho de retrocesso: Futurama tem escravos, devidamente adquiridos no Valongo, chegados ali de navio e vindos de uma origem distante. Os títulos dos capítulos denunciam a simbologia de toda essa trajetória.
Analogia
Joca não queria que a analogia com o Brasil de hoje, ou mesmo com a história brasileira, fosse explícita. “Eu temia, enquanto escrevia, que esse movimento histórico que se delineia na trajetória do personagem fosse alegórico e óbvio do momento que a gente vive. Reli muitas vezes para chegar a uma estrutura que não resultasse demasiado óbvio, queria que o leitor percebesse no final”, conta Joca. “O que me certificou que estava no caminho certo foi um sentimento que comecei a perceber no momento em que o Bolsonaro chegou ao poder, com esse desgoverno, essa noção de que estávamos retrocedendo, que a perda dos direitos era o regresso à barbárie.”
O personagem é um pequeno burguês, quando a história começa e, aos poucos, vai perdendo seus privilégios de classe: a luz deixa de chegar ao apartamento, a água também, e ele se vê expulso de sua própria casa. “É um momento representativo do que é a modernidade”, explica o autor. É um desencanto também, embora Joca vislumbre alguma esperança, personificada na fala da filha do protagonista: “Não escolhi ser vítima. Mas posso escolher não ser o carrasco”.
Para Joca, a realidade tem tirado a literatura brasileira de temáticas mais mundanas e pessoais, com muita autoficção de escritores preocupados em explorar seus próprios universos. “Meus últimos livros se tornaram mais claramente políticos. Gosto de acreditar que um romance tem quase a obrigação de funcionar como a metáfora de um país ou de um tempo presente. O livro deve ser simbólico, espicaçado pela agulha do presente. O próprio ato de escrever, no Brasil, é um ato político. Para mim, o escritor é aquele que não entrou na fileira dos assassinos”, diz o autor.
Futuro incerto
Se o personagem de Joca Reiners Terron se debate com o passado, é com o futuro que a socióloga de O último gozo do mundo, de Bernardo Carvalho, precisa lidar. Professora e autora que escreve sob pseudônimo, ela acaba de terminar um relacionamento quando a pandemia começa. Com um filho pequeno, a mulher empreende uma jornada Brasil adentro em busca de respostas para um país cada vez mais dominado pela morte e pelo messianismo. Em busca de uma espécie de profeta, um sobrevivente do vírus capaz de prever o futuro, mas desprovido de memórias, a personagem se perde entre seus próprios sentimentos e experiências coletivas violentas e temerariamente assertivas.
No caminho, a protagonista cruza personagens que colocam o leitor cara a cara com a dualidade brasileira. O livro nasceu de uma encomenda de um produtor de cinema, que queria um texto sobre o momento logo após a pandemia. O produtor abandonou o projeto, mas Carvalho seguiu com o romance. De acordo com ele, O último gozo do mundo está mais para fábula do que para distopia. “O que a gente está vivendo é um negócio que, há dois anos, seria considerado uma hiperdistopia”, explica. “O próprio sentido de distopia mudou completamente com essa pandemia e com as consequências sociais e individuais. É um livro tentando ver um futuro, sem conseguir ver. O que me interessava era a impossibilidade de prever o futuro que essa pandemia trouxe.”
O riso dos ratos — De Joca Reiners Terron. Todavia, 206 páginas. R$ 62,90
O último gozo do mundo — De Bernardo Carvalho. Companhia das Letras, 144 páginas. R$ 49,90