Espetáculo

Violência do racismo representada na abertura do 22º Cena Contemporânea

Danças e elementos gráficos discutem o racismo no espetáculo do francês Smaïl Kanouité, que abre o Cena Contemporânea. Testemunhos do Bronx e do Jacarezinho foram usados para criar a coreografia

» Nahima Maciel
postado em 30/06/2021 06:00 / atualizado em 30/06/2021 10:17
Para apresentação no Brasil, Espetáculo Never 21 também traz depoimentos da comunidade do Jacarezinho, no Rio de Janeiro -  (crédito: Maborough Mark/Divulgação)
Para apresentação no Brasil, Espetáculo Never 21 também traz depoimentos da comunidade do Jacarezinho, no Rio de Janeiro - (crédito: Maborough Mark/Divulgação)

Foi em 2018 que o francês Smaïl Kanouté teve a ideia de conceber um espetáculo no qual misturaria dança e elementos gráficos para falar de racismo e violência contra os negros. Convidado a produzir um espetáculo de dança, ele colheu testemunhos de moradores do Bronx, um bairro de Nova York. Os entrevistados colecionavam histórias como vítimas de violência, sobretudo policial, e os depoimentos forneceram a base de Never 21, que abre a 22ª edição do Cena Contemporânea amanhã. O espetáculo, como todos os 14 do festival, estará disponível on-line no canal do YouTube do evento e traz imagens poderosas em uma mistura de teatro, dança e artes gráficas.

Formado em design, Kanouté criou uma coreografia à qual foi incorporando histórias desde 2018. Para a apresentação no Brasil, ele incluiu depoimentos colhidos no Jacarezinho, no Rio de Janeiro. O artista soube da chacina em que 29 pessoas morreram baleadas em confronto com a polícia, em maio deste ano, e decidiu que a história deveria estar no espetáculo.

Kanouté morou no Brasil duas vezes, uma em 2010, outra em 2014. Veio estudar design na PUC do Rio e chegou a morar na favela da Rocinha. Na época, ficou fascinado pelo samba e pelo funk. Mais tarde conheceu o passinho. “Por isso decidi falar do Brasil. Pedi a amigos que me contassem sobre as violências que viveram e as pessoas que perderam”, conta. “Eu queria mostrar que esses jovens não sabem se estarão vivos amanhã. Eu me lembrei dos bailes funks e de como são frequentemente alvo da polícia. Isso tomou uma dimensão maior quando soube do massacre do Jacarezinho e por isso decidi terminar o espetáculo com o Brasil, para dizer que essas pessoas têm a vida dura e, mesmo assim, conseguem criar uma existência por meio da arte.”

Além de depoimentos do Rio e de Nova York, Never 21 também traz testemunhos da África do Sul e faz referência ao movimento Black Live Matters, que Kanouté tem acompanhado desde o ano passado. No palco, o aspecto gráfico se destaca com palavras em português, francês e inglês desenhadas nos corpos dos atores por uma artista que integra a equipe. É um vocabulário que faz referência ao racismo e à violência. A coreografia, em muitos momentos, evoca a brutalidade que atinge, principalmente, a população mais jovem.

Para o artista, a dança é uma linguagem acessível e capaz de carregar muitas mensagens. “A dança permite a conscientização, porque ela não utiliza palavras. A utilização de palavras pode criar uma barreira de compreensão, enquanto o corpo é um instrumento sincero, que vai direto aos corações. O corpo não mente e permite a circulação de mensagens universais. Nossa dança não é figurativa, mas, ao sugerir brigas, violência e golpes, conseguimos conscientizar”, acredita o coreógrafo.

Kanouté encara o tema do espetáculo como universal. O racismo estrutural está presente em várias sociedades, e a violência acaba sendo a mesma. “Pode acontecer com qualquer um”, diz. “Enquanto homem negro, isso pode acontecer conosco, nós nunca estamos livres disso. Não temos liberdade, nosso corpo não é livre, nosso pensamento, também não. Quando saímos na rua, somos sempre associados à imagem do homem negro, enquanto o homem branco não pensa que ele é branco. Não temos liberdade física, porque o racismo sempre ronda”, lamenta.

Filho de imigrantes que trocaram o Mali pela França, Kanouté acredita que a violência do racismo misturada à herança colonial provoca situações catastróficas. “Isso faz com que não saibamos de onde viemos e isso resulta em muitos jovens que se perdem na violência porque não sabem quem são. A partir do momento que sabemos quem somos, podemos afirmar nossa identidade pela dança, pela música. Precisamos ir ao passado para criar um presente e um futuro. Vivemos em bairros pobres e, para sobreviver, precisamos criar nossa própria existência”, diz.

Never 21 nasceu em formato de vídeo e, no mês passado, ganhou o palco pela primeira vez, em Paris, graças ao desconfinamento proporcionado pela vacinação contra a covid-19. Além desse espetáculo, o Cena recebe vídeos de outras obras de Kanouté agrupadas sob o nome de Corpo e Identidade. Até dia 10 de julho, espetáculos da França, do Chile, de Portugal, do Peru, Uruguai e Brasil serão apresentados no canal do YouTube do festival.


Programação

Quinta, 1º de julho, às 21h
Smaïl Kanouté - Corpo e Identidade (França)

Sexta, 2 de julho, 21h Reminiscência, de Malicho Vaca Valenzuela - Chile

Sábado, 3 de julho, às 11h
Inspira Fundo 2, do Canal Bebe Lume e Clarice Cardell (DF/Brasil), e às 21h - Reconciliação, de Patrícia Portela e Alexandre Dal Farra (Portugal/Brasil)

Domingo, 4 de julho, às 20h
Exit, do Cirque Inextremiste (França) e Uma palhaça confinada em gaste sua lombra em casa, de Ana Luiza Bellacosta (DF/Brasil)

Segunda, 5 de julho, às 21h
Solos para um corpo em queda, de Tatiana Bittar (DF/Brasil) e Estranhas, de Jonathan
Andrade (DF/Brasil)

Terça, 6 de julho, às 21h
Estro-Watts - Poesia da idade do rock, de
Gonçalo Amorim e Paulo Furtado, Teatro Experimental (Porto/Portugal)

Quarta, 7 de julho, às 21h
À espera de Godot, de William Ferreira (DF/Brasil)

Quinta, 8 de julho, às 21h
Prelúdio – Ficciones del silencio, de Diana Daf Collazos (Peru)

Sexta, 9 de julho, às 21h
Hamlet, de Chela De Ferrari (Peru)

Sábado, 10 de julho, às 21h
Ana contra la muerte, de Gabriel Calderón (Uruguai)

Notícias pelo celular

Receba direto no celular as notícias mais recentes publicadas pelo Correio Braziliense. É de graça. Clique aqui e participe da comunidade do Correio, uma das inovações lançadas pelo WhatsApp.


Dê a sua opinião

O Correio tem um espaço na edição impressa para publicar a opinião dos leitores. As mensagens devem ter, no máximo, 10 linhas e incluir nome, endereço e telefone para o e-mail sredat.df@dabr.com.br.

Os comentários não representam a opinião do jornal e são de responsabilidade do autor. As mensagens estão sujeitas a moderação prévia antes da publicação