Comportamento

Invasão geek: da cultura de nicho ao mainstream

Grandes e pequenas empresas estão investindo em produtos e referenciais nerds pelo grande potencial de consumo no mercado do entretenimento

Lisa Veit *
postado em 29/06/2021 07:26 / atualizado em 29/06/2021 06:00
 (crédito: Zade Rosenthal/Divulgação)
(crédito: Zade Rosenthal/Divulgação)

Tem sido amplamente aceito no meio científico que o universo vem se expandido em ritmo acelerado. O mesmo pode-se dizer do universo geek. Tudo começou a mudar a partir dos anos 1990, com a ideia de poder econômico associada, então, às grandes empresas de tecnologia. A partir disso, a cultura nerd, antes marginalizada, tornou-se mainstream. O perfil do nerd também destacou-se positivamente, e passou a ser um novo referencial de sucesso, espelhado em tipos como Bill Gates, Steve Jobs e Steve Wozniak. E mais recentemente, em Mark Zuckerberg, Elon Musk e Jeff Bezos, por exemplo. Essa mudança reverberou na cultura pop que, por sua vez, abraçou referências, produções, e produtos próprios de um nicho antes reduzido e hostilizado pela aparência, pelos hábitos e pelo modo de socializar.

Há alguns anos, o mercado do entretenimento tem percebido o potencial das produções geek, das plataformas de conteúdo e, especialmente, do perfil desse público: apaixonado, ampliado e imerso no digital. Para servir às diferentes gerações nerds, com nostalgia e novidades, grandes e pequenas empresas estão investindo cada vez mais na expansão de franquias clássicas de filmes, séries, quadrinhos, livros e jogos; na combinação entre as linguagens e apropriação das referências; e no lançamento de novas produções dos gêneros favoritos.

Só no cinema, por exemplo, o Universo Cinematográfico Marvel (MCU) produziu entre 2008 e 2019, cerca de 22 filmes baseados em quadrinhos e, só neste recorte, a franquia gerou mais de US$ 22,5 bilhões no mundo, tendo Vingadores — Ultimato (2019) arrecadado sozinho US$ 859 milhões. No Brasil, a produção também bateu recorde com cerca de R$ 334 milhões em bilheteria. Segundo dados estimados pela Associação Brasileiras de Licenciamento (Abral), em 2020, o Brasil teve um faturamento estimado de R$ 21 bilhões e crescimento de 5% em royalties e copyrights de produções e produtos dos segmentos geek e pop.

Na pandemia, o mercado ficou ainda mais atento ao público, especialmente por meio das redes sociais; das gigantes do streaming, como a Netflix, HBO Go, Amazon Prime e Disney Plus; e das plataformas digitais, como YouTube e Spotify. Essas e outras mídias digitais, como principais alternativas, substituíram os espaços e cinemas fechados e garantiram a continuidade de importantes projetos, antes presenciais.

A Comic Con Experience (CCXP), por exemplo, é a maior convenção geek brasileira, que ocorre anualmente, em dezembro, em São Paulo. Em 2020, o evento teve a primeira edição virtual, intitulada CCXP Worlds, e garantiu a visualização de 1,5 milhão de pessoas, com picos de 350 mil usuários simultâneos nos painéis. Este ano, ocorre entre os dias 2 e 5 de outubro. Ainda não se sabe se presencial.

No Brasil, a comunidade geek tem contribuído para a criação da cena nacional, que ainda necessita de maiores investimentos e visibilidade. Em meio à crise da pandemia, nasceu, por exemplo, a GeekMusik, primeira gravadora nacional especializada em música geek, com artistas que movimentam bilhões de views e plays no streaming. O CEO Alexandre Duncan, que antes já comandava a gravadora RapRJ, conta que a ideia surgiu quando foi conhecendo artistas que traziam o universo nerd às letras do rap. “Percebemos que não se tratavam de artistas isolados, eram vários, com uma linguagem e uma identidade bem específicas. Que existia uma cena a ser trabalhada. Fizemos questão de montar um time de pessoas que gostam e vivem essa cultura”, explica.

O quadrinho, o audiovisual e os games também têm buscado investimento para expandir o mercado e para valorizar as referências nacionais. Esse é o caso do estúdio de entretenimento Eleven Dragons e a plataforma digital de streaming de quadrinhos Social Comics, que destaca e fomenta produções brasileiras. “A Social Comics caminha para se tornar uma plataforma de conteúdo mais abrangente. Os desafios são muitos, porque temos a missão de fazer algo de qualidade internacional com budget dez vezes menor.

Estamos aprendendo bastante e tentando criar uma cultura própria para desenvolver algo tão complexo no Brasil”, explica o CEO da Social Comics e Eleven Dragons, JP Sette. Em parceria com a marca Red Nose, eles lançaram a série em quadrinhos Wardogs Chronicles, disponível na plataforma, e também se preparam para produzir e disponibilizar a série em formato de animação que deve estrear em 2022, em uma plataforma própria. “O Brasil tem talentos incríveis que estão em mesmo nível que os de outros países. Cabe a nós valorizarmos”, reforça JP Sette.

*Estagiária sob a supervisão de José Carlos Vieira


» Três perguntas para Anderson Rocha, nerd, jornalista e professor dos cursos de comunicação da Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG)

Anderson Rocha desenvolveu a pesquisa de doutorado no intuito de entender o universo nerd. Intitulada Do lambda ao bazinga! Transformações e recriações culturais no universo nerd, a pesquisa usa como base de comparação o filme A vingança dos nerds (1984) e a série The Big Bang Theory.

Cultura pop e cultura nerd podem ser consideradas sinônimos nos dias de hoje?

Eu não entendo como sinônimos. Entendo como pop, essa grande cultura que emerge nos Estados Unidos, na efervescência político-econômica e cultural do pós-guerra nos anos 1950. É um formato industrial de produção cultural, regida pelas leis de mercado, e que culmina em uma maior facilidade de acesso e consumo. Já a cultura nerd, ao contrário, sempre foi uma cultura de nicho muito pequeno e congrega uma quantidade de textos, ritos, práticas e identidades próprias, que foram se modificando e adentrando à cultura pop.

Como o nerd passa a ser cool?

No final dos anos 1990, o mundo deixou de ser propriedade do americano tipo Rockefeller (capitão da indústria), para ser propriedade de um tipo de americano refletido no Bill Gates, no Steve Jobs, no Steve Wozniak (tecnologia da informação). Aquele cara que fez física ou tecnologia na faculdade; passou a frequentar o vale do silício. Nos anos 2000, esses caras são o reflexo do que a gente tem de pessoas bem-sucedidas: as habilidades são necessárias, as criações consumidas e o intelecto desejado. Essa é, inclusive, a verdadeira vingança do nerd, não como no filme (de 1984). É nesse novo contexto que entram as representações nerds de The Big Bang Theory (2007); ou do Tony Stark, em Homem de Ferro (2008), por exemplo.

Quais são as produções mais importantes para os nerds ganharem a cultura pop e uma ressignificação?

O filme Matrix, de 1999, é cheio de conteúdos que só os nerds tinham repertório para entender. Muitas referências de computação, história e religiões. Um filme para os nerds, que o mundo abraçou como um grande sucesso do sci-fi, que é um gênero nerd. A segunda, de 2000, é a trilogia do Senhor dos anéis, que é o grande bastião do nerd na literatura e no cinema. Além dessas, as produções de super-heróis baseados nos quadrinhos da Marvel e da DC Comics e o retorno das franquias Star Wars e Star Trek. Entre outros.

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