Já está disponível nas plataformas digitais a nova releitura de um dos maiores clássicos da música brasileira, Roda viva, feita pela banda Francisco, el Hombre. A nova versão integra a trilha sonora do documentário A fantástica fábrica de golpes, que detalha o colapso da democracia brasileira desde o impeachment da então presidente Dilma Rousseff, em 2016.
Defendida pelo compositor Chico Buarque, ao lado do grupo vocal MPB4, no Festival de Música Popular Brasileira da TV Record, em 1967, Roda viva marcou uma geração que assistia à queda da democracia brasileira com a tomada do poder pelos militares. Mateo Piracés-Ugarte, um dos integrantes da Francisco, el Hombre, acredita que a música volta a ser pertinente mais de cinco décadas após o seu lançamento. A regravação também tem menções a outro clássico de Chico da época da ditadura, a esperançosa Apesar de você.
“Após um golpe que tira alguém do poder, a gente se vê dentro de um governo que pratica um capitalismo doentio, com zero intenção de cultivar os direitos humanos básicos, num ciclo de devastação do meio ambiente e de censura, que a gente viu anos atrás. Então, esse é o grande momento de reinterpretar essa música”, analisa o artista responsável pela voz e violão do grupo.
Conhecida por apresentações que agitam multidões em shows e festivais Brasil afora, Francisco, el Hombre tem o costume de produzir músicas politizadas. As canções saciam a sede de um público que cada vez mais exige posicionamentos dos artistas diante dos recorrentes imbróglios da polarizada esfera política brasileira. Mateo reconhece que não é fácil se posicionar politicamente num momento como esse, e que existe um preço a se pagar ao escolher um lado. Ele enxerga censura dentro do cenário artístico, que pode não ser como a institucionalizada pelo AI-5, o mais duro ato promulgado pelo governo militar, em 1968, mas que também é muito intensa.
Ao lado de Mateo, Juliana Strassacapa (voz e percussão), Sebastián Piracés-Ugarte (voz e bateria), Andrei Martinez Kozyreff (guitarra) compõem a formação da banda que mistura ritmos latino-americanos em uma explosão carnavalesca de ideias. Em 2016, lançaram a bolso nada, uma crítica direta e contundente ao presidente Jair Bolsonaro, então deputado federal. Ao Correio, Mateo fala, entre outros assuntos, dos desafios da música no atual cenário político, da censura e de inspirações artísticas.
Entrevista Mateo Piracés-Ugarte
Antes de gravar a releitura de Roda viva, vocês chegaram a conversar com o Chico Buarque?
O convite chegou para nós através dos diretores do documentário do qual a música faz parte da trilha sonora, A fantástica fábrica de golpes, que fala sobre como a retirada da Dilma do poder foi um golpe extremamente influenciado pela mídia. Entre as personalidades influentes entrevistadas para o filme está Chico Buarque e foi assim que conseguimos a liberação dele para regravarmos Roda viva. Não chegamos a ter contato direto com ele, mas sabemos que ele gostou bastante da música, o que já é inacreditável para nós.
Nos momentos de inflexão na história, a classe artística sempre sai na frente, levantando bandeiras, denunciando e gritando palavras de ordem. Você avalia que, no contexto geral, a música brasileira, ou pelo menos parte dela, ainda tem esse papel que foi muito bem desempenhado pelos músicos da geração da Roda viva?
Com certeza a música está tendo esse papel, desde as temáticas que a Anitta tem trazido dentro de um mundo mainstream do pop latino-americano, até as temáticas que Detonautas, Baianasystem têm trazido e a ascendência cultural de pólos fora do eixo central de cultura brasileira, como Salvador, Belém e Pernambuco. Nós estamos vendo os artistas levantarem suas bandeiras. Como diz Nina Simone, um dos papéis fundamentais do artista é refletir a sua época. Sou muito orgulhoso da cena atual nesse quesito.
Vocês têm uma música que é uma crítica contundente e direta ao atual presidente da república, que na época ainda era deputado federal. Como artistas inseridos dentro de um contexto de mercado, quais os desafios de se posicionar dessa forma?
Acontecem censuras. Nem sempre é uma arma na sua cara, dizendo que você não pode falar alguma palavra. A censura também é velada e igualmente intensa. Não ser aprovado em uma série de editais, de concursos, não poder tocar em certos lugares, não poder se vincular dentro de um ciclo que existe dinheiro que finalmente consegue pagar o que os artistas merecem também são formas de censura. A real é que quando você bota a cara à tapa, muita gente se identifica, principalmente se você está indo em prol dos direitos humanos, da vida, do meio ambiente e do amor. Tem muita gente que se identifica com isso e o feedback positivo é muito maior, porque você sente que está na página certa da história.
O show de vocês é inesquecível, sempre é um dos pontos altos em festivais devido à animação de muitas das músicas. O Francisco, el Hombre é um carnaval mais consciente e politizado?
Temos uma regra: a música é um instrumento de comunicação. Não queremos subir no palco e fazer um show sozinhos, subimos no palco pra fazer uma catarse no público, eles são tão parte do show quanto nós. A diferença é que o público não vai aos shows esperando ser parte dele e isso é tão lindo. Não tem catarse maior do que ter uma multidão de gente se abraçando em prol de uma causa, em prol do amor, de uma ideia… Todos abraçados, cantando juntos, chegamos num lugar impossível de se prever. Somos um carnaval consciente e politizado. Essa catarse coletiva é o que a gente provoca com a música. Essa conexão é justamente o que a lenda colombiana “Francisco, el Hombre” fazia: conectar as cidades através da música.
Quem você tem como referência e admiração nas gerações atual e anteriores na música brasileira?
As maiores referências são daquelas pessoas que estão construindo a carreira ao nosso lado. Não tem nada mais potente do que ver aquela banda amiga fazer um show inacreditável antes do seu em um festival. Se você vê alguém como você lançando algo muito foda, pensa: “vou fazer o meu melhor, porque aquela pessoa está fazendo o melhor dela”. Isso é a melhor referência possível: a palpabilidade de ser incrível. Mulamba, Luê, Baianasystem, ATTØØXXA, Braza, os projetos paralelos que temos dentro da Francisco, Liniker e Josyara são algumas das pessoas que mostram como a cena atual pode ser incrível. Sobre gerações anteriores, posso falar do que ando ouvindo, que é Jovelina Pérola Negra, num disco chamado Sorriso aberto, que é um disco lindo, em que ela canta com uma tristeza tão intrínseca. A partir da lágrima ela tira qualquer sorriso, é uma aula de samba para mim.
*Estagiário sob supervisão de Nahima Maciel
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