Depois de 23 anos de atuação na cena teatral brasiliense, 400 espetáculos, mais de uma centena de cursos de formação e um público total de 120 mil espectadores, o Teatro Goldoni, situado na Casa d’ Itália (EQS 208/209 Sul), encerrou as atividades. Com o espaço aconchegante e flexível, que se adaptava a diferentes propostas de encenação, o Teatro Goldoni era um dos mais importantes territórios de experimentação das artes cênicas candangas.
O fechamento do espaço ocorreu em razão de uma situação que se repete em Brasília. A Casa d’Itália ocupava um terreno na Entrequadra 208/209 Sul, mediante um contrato de cessão pelo período de 20 anos, que tinha como uma de suas cláusulas a obrigação de manter 40% de atividades culturais. O contrato venceu, a Casa d’Itália tinha preferência para a compra, mas abriu mão, e o terreno foi vendido pela Terracap.
“Durante a pandemia, mudaram a licitação, a cláusula dos 40% de obrigatoriedade para atividades culturais caiu”, explica Maria Carmem de Souza, diretora do Teatro Goldoni: “O novo dono não tem interesse em manter atividades culturais no espaço. Parece que vão demolir tudo e construir um shopping”.
Com o fato consumado, Carmem reivindica que o teatro seja transferido para outro espaço. É preciso encontrar uma sala de, aproximadamente, 100 metros, com outras salas menores adjacentes. Carmem terá uma audiência com o secretário de Cultura e Economia Criativa, Bartolomeu Rodrigues, na próxima segunda-feira. O secretário lamentou “o fechamento desse espaço importante para as artes cênicas da capital” e disse ao Correio que pretende se inteirar da real situação do local.
“O Teatro Goldoni é moderno como a cidade de Brasília”, argumenta a gestora. “É flexível porque permite escolher a relação do palco com a plateia. Pode se transformar em palco italiano, palco elisabetano ou arena. Houve espetáculos em que as pessoas se sentavam no chão. A Fundação Balé Brasil, por exemplo, tem um espaço que não está sendo utilizado e poderia abrir o Teatro Goldoni.
O Espaço da 508 Sul também dispõe de salas. O importante é que Brasília não perca mais esse espaço cultural, acessível, destituído de luxo. O nosso único luxo é a configuração dos equipamentos, que permite flexibilidade na encenação”.
Teatro no subsolo
O Teatro Goldoni nasceu do Espaço G51, criado por Maria Carmem, no subsolo da casa em que morava na 705 Sul. Carmem chegou a Brasília em 1991, vinda do Rio de Janeiro, com mais de 20 anos de experiência de cenografia: “Era uma sala muito pequena, mas o público se mostrou interessado”. Em 1988, com os sócios do Núcleo de Artes Cênicas, Guilherme Reis e Yara Pietricovski, Carmem resolveu instalar o teatro na Casa d’Itália.
Entre os destaques da programação figura a memorável encenação de Arlequim, de Goldoni, sob direção de Hugo Rodas, com a participação de Chico Santana, João Antonio, Bidô Galvão, Carmem Moretzsohn, entre outros. Os Irmãos Guimarães fizeram uma adaptação de Sonho de uma noite de verão, dirigido pelos Irmãos Guimarães. Miriam Virna encenou trechos de Decamerão, de Boccaccio.
O Teatro Goldoni veio para prover a necessidade essencial de formação, experimentação e lapidação de novos talentos. Estimulou a criação de uma série de outras salas pequenas para artes cênicas na cidade: “Elas permitem que uma peça de iniciantes, recém-saídos da UnB e da Faculdade Dulcina, fique em cartaz mais tempo”, observa Carmem.
No Rio de Janeiro, Maria Carmem atuou durante mais de 20 anos em projetos de arquitetura cênica. Foi assessora do antigo Inacem, Instituto Nacional de Artes Cênicas, quando teve a oportunidade de adaptar vários espaços para o teatro.
“É louvável que o Sesc, por exemplo, tenha construído excelentes teatros nas cidades do DF. Mas esses espaços só funcionam quando a comunidade assume a própria capacidade de produzir os espetáculos. Ninguém sai de Sobradinho e se desloca até a Ceilândia para ver teatro. Mas o teatro de bairro chama toda a vizinhança. Se o filho da vizinha está no elenco, todos querem ver”.
Resiliência
O Teatro Goldoni alcançou sucesso na formação de público da vizinhança. No entanto, Maria Carmem alerta que é preciso um trabalho paciente e resiliente. “Nós demos descontos, e isso ajudou a ter a presença dos moradores. Depois, o metrô ajudou na mobilidade e tivemos também a presença de pessoas de Ceilândia e de Taguatinga”.
Carmem enfatiza que é imprescindível o apoio das políticas públicas de incentivo ao teatro. Sem esse apoio, a tendência é de fechamento dos espaços, o que ocorreu com o Espaço Semente, no Gama; e Espaço Imaginário Cultural, em Samambaia: “Como o futebol começa nas peladas dos campinhos, o teatro também nasce nas pequenas salas. Não é o Teatro Nacional que forma atores ou que forma o público. É importante esse apoio, porque é por meio destes teatros pequenos, as salas das “peladas” do teatro, que o público vai reconhecendo os artistas, eles vão se formando e se abrindo para cidade inteira.”
Depoimentos
Hugo Rodas, ator, diretor e professor de teatro
“O Teatro Goldoni tem relevância enorme na minha vida.
É dos mais usados pela cidade, é um ponto de apoio importantíssimo para a cultura, encena, dá aulas e forma. Não pode parar nunca. Cada dia estamos mais ameaçados de desaparecer. É uma perda que não se pode perder.
O espaço não importa, o importante é que a gente continue trabalhando em outro lugar. Lamento não ter tanta grana para comprar um espaço e garantir a nossa independência. No Uruguai, os teatros independentes são mantidos pelos sócios, que têm direito aos ingressos. O Teatro Goldoni precisa ser transferido para outro espaço.”
João Antônio Esteves, ator, diretor e professor de teatro
“O Teatro Goldoni faz parte da história do teatro de Brasília e da minha em particular. Em 1998, inauguramos o espaço com Réveillon, de Flavio Márcio, sob a direção de Guilherme Reis. Fazia parte do elenco. A partir daí nunca deixei de frequentar esse charmoso lugar como artista e espectador. Maria Carmen e Marbo Giannaccini sempre nos recebiam com muito carinho. Goldoni era lugar de experimentos e de abrigo para nossas produções. Brasília não pode permitir mais essa perda. Temos a obrigação de reabrir esse sonho em um outro espaço. Não podemos perder os equipamentos, o espírito, o aconchego e as portas abertas para a criação. Chega de desprezo pela poesia.”