MÚSICA

Nelson Sargento deixou marcas no samba e lembranças por Brasília

Vitimado por covid-19, o sambista Nelson Sargento deixa legado nas artes, como presidente de honra da Mangueira. Nos 96 anos de vida, ele tornou o samba resistência

Lisa Veit*
postado em 28/05/2021 06:00 / atualizado em 28/05/2021 12:17
 (crédito: Edinho Alves/Divulgação)
(crédito: Edinho Alves/Divulgação)

Morreu nesta quinta-feira (27/5), vítima de complicações decorrentes da covid-19, o ilustre sambista Nelson Sargento, aos 96 anos. Conhecido por suas brilhantes contribuições para a poesia do samba e como símbolo da resistência, o presidente de honra da Mangueira deixa a esposa, Evonete Belizário Mattos, os nove filhos, além de familiares, amigos e fãs. Ele estava internado desde o dia 20 de maio no Instituto Nacional de Câncer (Inca) — Unidade Cruz Vermelha.

Segundo o boletim médico, Nelson já chegou debilitado ao hospital, com quadro de desidratação, anorexia e significativa queda do estado geral. Dois dias depois, foi levado à UTI. Na quarta-feira, o artista foi intubado e não resistiu ao tratamento. Neste mesmo hospital, ele havia concluído o tratamento de um câncer de próstata, diagnosticado em 2005.

Foi com o hino O samba agoniza, mas não morre, do primeiro LP solo, Sonho de um sambista (1979), que ele ganhou fama nacional. A mensagem dos versos é a de que o samba é resistência, assim como foi o compositor durante mais de nove décadas. “Na minha época, a juventude morria muito de tuberculose. Eu pedi a Deus para chegar pelo menos aos 30.

Cheguei aos 30. Agradeci a Deus, fui aos 40. E aí eu disse, ‘vou pedir mais não’, chega. E cheguei aos 95. Coisas assim que a gente faz, porque acredita”, brincou o baluarte da Estação Primeira de Mangueira, bem-humorado, em uma entrevista ao jornal O Globo, no ano passado. No início deste ano, o Brasil comemorou sua imunização e agora chora sua partida por agravo da covid-19. “Ao dar o suspiro derradeiro”, como dizia o verso, deixa o samba mais triste.

Trajetória artística

O sambista uma vez disse: “Eu sou do tempo que o operário andava de tamancos e de calça remendada, esperando a hora de comer”, à medida em que apresentava com saudosismo as belezas — e durezas — do lugar em que cresceu, em cena do documentário Nelson Sargento no Morro da Mangueira (1997).

Nascido Nelson Mattos, na Santa Casa do Rio de Janeiro, em 25 de julho de 1924, o artista se encontrou com o samba ainda na infância. Aos 9 anos, o menino já desfilava, mas pela Escola Azul e Branco, no Morro do Salgueiro, onde morava com a mãe, Rosa Maria da Conceição Mattos, e os 17 irmãos. Conviveu pouco com o pai, Olímpio José de Mattos Junior.

Aos 12, encontrou sua casa na música ao se mudar com a família para o Morro da Mangueira a convite do padrasto português, Alfredo Lourenço. Lá, passaria a acompanhar o padrasto e pintor de parede — também compositor de fado — nos ensaios da então Escola Unidos da Mangueira e aprenderia a tocar violão com Cartola, Nelson Cavaquinho e Geraldo Pereira. Incentivado, entre outros, por Carlos Cachaça, em 1942, passou a integrar a ala de compositores da Mangueira, e daí em diante presenteou o carnaval carioca com letras brilhantes de samba-enredo, e o Brasil, com as demais canções, ao lado de outros nomes da Velha Guarda do samba.

Como o astro-rei, Nelson ascendeu na manhã da Mangueira. Em 1958, tornou-se presidente da ala dos compositores e, em 2013, foi nomeado presidente de honra da escola. Nos desfiles de 2019 e 2020, ganhou papel de destaque, desfilando como personagens protagonistas do enredo: Zumbi dos Palmares e José, carpinteiro e pai de Jesus Cristo, respectivamente.

Emoção dos amigos

Compartilhando o papel na formação das raízes do samba, Monarco, presidente de honra da Portela, lamentou profundamente a morte do grande amigo e o descreveu como “um rapaz muito educado e fino. Um malandro mesmo, pente-fino, como diria a gíria antiga”.

 

“O samba está de luto, perdeu seu grande baluarte. Ele era da Mangueira, mas todas as escolas o adoravam. Porque ele era maior, era do samba! Ele lutou, foi da resistência, pegou a época em que a polícia ainda corria atrás de sambistas. Fez O samba agoniza, mas não morre, que ficou, e vai eternizar o nome dele para sempre. É um eterno, e muito bonito, nome no samba”, homenageou, o compositor portelense, em entrevista ao Correio.

Monarco lamenta a perda do músico e do amigo, com quem partilhou inesquecíveis histórias. “O que eu tenho para dizer agora é que: só a prece e nada mais. E que Deus o ilumine onde estiver. Onde nos encontrávamos, dava samba. Eu brincava com ele e dizia: ‘Nelson, você não precisava fazer mais nada, o que você fez já falou tudo”.

*Estagiária sob a supervisão de José Carlos Vieira

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Show no Outro Calaf

Nelson Sargento no Outro Calaf -  (crédito: Camila Albuquerque/Divulgação)
crédito: Camila Albuquerque/Divulgação

Nelson Sargento tinha ligação artística e afetiva com Brasília. Aqui, costumava vir não apenas para fazer shows, mas também para visitar amigos, sempre trazendo a tiracolo uma sacola com quadros de pintura naif, que costumava presentear a alguns privilegiados ou vendê-los. O trabalho que realizava utilizando telas era outra faceta do seu talento, com o qual complementava a renda que obtinha enquanto cantor e compositor.

Zico Cerqueira, ex-presidente da Aruc, mesmo tendo ligação profunda com a Portela, tornou-se amigo fraterno de mangueirense Nelson. Desde que se aproximou do sambista, tornou-se um misto de produtor e anfitrião dele aqui na cidade. “Sargento fez, pelo menos, 12 apresentações nos palcos brasilienses. O primeiro, em 1989, logo depois que o conheci pessoalmente, foi na Aruc. Houve shows, também, no Feitiço Mineiro, Calaf e Teatro da Caixa”, lembra. “O trouxe também para fazer uma exposição de pintura no Carpe Diem e lançamento do livro Prisioneiro do mundo, na livraria do Ivan da Presença, no Conic”, acrescenta.

Atualmente produtor e empresário de Serginho Meriti, Cerqueira recorda-se da vez em que Nelson veio visitá-lo e juntos foram passar as festas de fim de ano em Caldas Novas (GO). “Eu o acolhia quando vinha a Brasília e, por vezes, ele me hospedava no apartamento que, com muito esforço, inclusive pintando parede, adquiriu em Copacabana. Na minha visão, a música brasileira acaba de perder um dos mais talentosos compositores de samba e uma figura humana admirável”.

Destacado violonista, o carioca Jaime Ernest Dias viveu a experiência de acompanhar Nelson Sargento em algumas oportunidades. “Estava no Rio, em 1987, e fui convidado para acompanhar seu Nelson, na Sala Sidney Miller, da Funarte, quando ele lançou LP de estreia. Depois, toquei com ele em show na Aruc. Então nos tornamos amigos, embora me tratasse como filho”, conta. “Em nova ida ao Rio, ele não só me convidou para almoçar, como foi me esperar na Central do Brasil, para que fôssemos de trem a Belfort Roxo, onde morava naquela época”, complementa.

Em seu último show na cidade, no dia 29 de novembro de 2017, no Outro Calaf, Nelson Sargento teve ao seu lado o grupo 7 na Roda. “São lembranças que vamos guardar para sempre”, destaca Breno Alves, vocalista e pandeirista grupo. “Na parede da minha casa, está em relevo um quadro desse mestre do samba e da pintura, que ganhei de presente do Zico Cerqueira, grande amigo de seu Nelson”, diz emocionado.

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