Quando o mundo somava quase sete meses em regime de isolamento social, em outubro do ano passado, o produtor Marco Mazzola conseguiu realizar um dos mais originais projetos on-line da era pandêmica. Solidário aos amantes do jazz, que sofriam sinais de abstinência de uma das expressões artísticas que mais dependem de presença física para ocorrer, convenceu os donos da marca suíça Montreux Jazz Festival e fez o que nem a matriz ousou: promover a segunda edição do evento no Rio de Janeiro, sediada em um hotel que garantisse a bela vista da orla que o mundo se acostumou a ver.
Mazzola contou com uma base nos Estados Unidos, de onde artistas que não podiam viajar fariam shows, e levou para o Fairmont Copacabana nomes internacionais que já estavam no Brasil. Stanley Jordan, aqui no país, se uniu ao guitarrista Diego Figueiredo. Dos EUA, o grupo vocal gospel Sing Harlem fez homenagem a Milton Nascimento, e Milton a respondeu daqui. O baiano Letieres Leite compareceu com sua Orkestra Rumpilezz. O paulistano Toquinho e o gaúcho Yamandú Costa cruzaram seus violões.
Sucesso
O show de Yamandú e Toquinho, realizado em 25 de outubro de 2020, mesmo sem grandes planejamentos e depois de dois ensaios, foi lançado em áudio ontem. “Não há pretensão alguma em fazer sucesso com isso”, diz Yamandú, de Lisboa, onde mora desde dezembro. “Fizemos uma grande homenagem ao violão brasileiro, mais do que às nossas carreiras.”
Surpreso com a decisão do lançamento, Toquinho também tirou o foco de qualquer cerimonial. “Se soubesse que seria lançado, teria ensaiado mais”, comentou, rindo.
São 10 temas nos quais se revezam os representantes de duas gerações e escolas de violões tão diferentes – e esse é um ponto que fica interessante ao vivo. Eles só se encontram mesmo em quatro momentos: “Apelo” (Baden Powell e Vinicius de Moraes, canção de 1966), no choro “Odeon” (de Ernesto Nazareth, lançamento de 1909, letrado por Vinicius em 1968), em “Tua imagem” (de Canhoto da Paraíba, de 1968) e na canção “Bachianinha nº 1” (do mestre de Toquinho, Paulinho Nogueira, feita em 1965).
Nos outros temas, o duo faz performances solo: Toquinho nas caymmianas “O bem do mar” e “Saudade da Bahia”, além de “Asa branca”. Yamandú em “A Legrand”, homenagem ao compositor francês Michel Legrand, inédita em gravações, além de “Porro” e “Sarará”.
Por vezes, há um pouco de Yamandú em Toquinho quando se ouve a abertura de “O bem do mar”. A mão direita vem mais pesada na intensidade com que age sobre as cordas, tão marcante nas explosões do amigo gaúcho.
A voz do violão de Toquinho, algo entendido logo no início de suas aulas, ainda menino, com o professor Paulinho Nogueira, e que se tornou marca registrada antes mesmo que ele virasse o compositor consagrado por parcerias (Jorge Benjor, Chico Buarque, Vinicius de Moraes) se faz muito das melodias tocadas ao mesmo tempo que os acordes que encadeia como mestre.
O violão de Toquinho é das canções, das harmonias, e não dos solos, o que não o torna menor. Mas o clima espontâneo que se vê em sua passagem por Montreux cobra um preço. Nem todas as frases chegam limpas e os andamentos podem se apressar. Coisas das apostas nas quais mais valem as amizades e o sabor do momento do que o peso da exatidão.
A origem de Yamandú, bem mais ao sul do paulistano Toquinho, vem da confluência de argentinos, gaúchos e mouros. O choro do Sudeste só chegou depois. Sim, ele diz, a colonização árabe em território rio-grandense é percebida. “A relação com o cavalo, o assado, temos muito desses resquícios.” Na música, ele se reconhece agora ainda mais, respirando os ares de Lisboa.
O violão de personalidade flamenca e cigana de Yamandú parece procurar sempre o espetáculo, algo que o difere da sobriedade de Raphael Rabello, e não se doma por partituras (que, aliás, o gaúcho não lê). O outro lado de quem mantém a temperatura sempre elevada em sua performance talvez esteja nos efêmeros tempos na delicadeza e na pouca capacidade de permanência nos campos da contemplação. O violão de Yamandú, como um bailarino espanhol, quer sempre os aplausos depois do grand finale.
Trio
A vivência ibérica do gaúcho vai render um primeiro projeto, que será divulgado em breve. “Caminantes” é um álbum gravado em trio, com o violão de sete cordas de Yamandú, a guitarra portuguesa do lusitano Luis Guerreiro, virtuoso expoente da música moderna de seu país que já esteve com a cantora Mariza em grandes salas de concerto do mundo, e o bandoneon do argentino Martin Sued, também de digitações ágeis e frases longas.
Esse disco autoral mostra uma outra matriz racial pouco falada, mas muito formadora da linguagem brasileira não ligada diretamente à África. A música peninsular de Yamandú, Sued e Guerreiro prova como o fado, o tango e a milonga saem, ao final, da mesma mãe.
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