Produtor de cinema, à frente de clássicos como A dama do lotação e Dona Flor e seus dois maridos, diretor de fotografia de Terra em transe e Vidas secas, e um dos criadores do Canal Brasil; Luiz Carlos Barreto, beirando os 93 anos, não perde o fio da meada do bom e velho repórter de vanguarda que foi. “Não sou saudosista de maneira nenhuma. Uso o passado para construir o futuro. Você não constrói futuro sem conhecer o seu passado. Eu não digo ‘no meu tempo’. O meu tempo é hoje”, destaca, em entrevista exclusiva ao Correio.
O cearense que assentou o Brasil na corrida pelo Oscar e fortaleceu o imaginário esportista dos brasileiros — ao lado de Armando Nogueira, produziu Garrincha, alegria do povo, além de ter dirigido Isto é Pelé — vive um momento de reflexão, ao testemunhar a convivência entre teatro, cinema, rádio, podcast e plataformas digitais. Na cabeça dele, fervilha, ainda, a atenção reservada à cultura nacional, em dimensão bem ampliada. “O Brasil tem, por exemplo, cozinhas regionais de caráter internacional, há a moda brasileira, que poderia ser uma indústria de exportação muito grande, com um artesanato único. Mas, não há uma política pública para isso. Tudo, agora, ao contrário: se faz uma política de perseguição dos artistas brasileiros sem perceber que estão fazendo um crime contra o país”, demarca.
Valorizar talentos é uma atitude constante de Luiz Carlos Barreto, pronto para a nova empreitada: afirmar a Amazônika, vindoura frente de futuras produções. Antenado com temas e vertentes do cinema, ele sabe reconhecer singularidades de colegas de arte, como o enaltecido Paulo Gustavo. “Ele (que desbancou as bilheterias de Dona Flor e A dama do lotação, com filmes como Minha mãe é uma peça) é, antes de tudo, um grande ator. Humor é o forte da nossa indústria cultural; no cinema, no teatro, na televisão. O Paulo Gustavo é um cômico comparável aos grandes nomes mundiais, como foi o Grande Otelo, o Oscarito. O humor é o melhor remédio para preservar a vida e ele teve a força do humor com ele. Rezei pela recuperação dele, na torcida, ainda, pelo cinema”, sublinha.
O que pode adiantar da Amazônika, a nova produtora dos Barreto? Aliás, como é empreender no meio de uma pandemia, e investir no terreno do desenho animado?
A animação é uma das coisas mais fortes do cinema mundial, como enorme mercado. Ela rende maiores possibilidades. No projeto Amazônika, vamos contar a história da origem da floresta, algo impossível de ser feito no modo tradicional. Em 2022, a animação atingirá US$ 250 bilhões de cifras de negócio. Nas rendas, uma animação traz entre US$ 800 milhões e US$ 1,5 bilhão. O filme Amazônika tem o objetivo de entrar no mercado que tem dublagens facilitadas e enorme aceitação.
Pretendemos fazer uma franquia de 10 filmes sobre temas amazônicos. Vamos explorar as lendas, elementos de sustentabilidade, de política e de preservação. Ampliaremos para áreas amazônicas colombianas, peruanas e equatorianas. Vamos fazer muitos documentários. Há encaminhado o Icamiabas, que traz a história do feminismo ancestral, nas tribos.
Falaremos ainda dos biomas amazônicos, as riquezas que estão escondidas e inexploradas. Preservar não é sacralizar a floresta: há um viés de desenvolvimento econômico sustentável. Quem tem nos assessorado é o Carlos Saldanha (Rio). Ele visualiza projetos algo infinitamente melhor do que A era do gelo. A floresta amazônica é magnânima, pela fauna, flora e o habitat humano.
O senhor não se diz saudosista, mas, como torcedor voraz, de que modo vê o futebol de ontem e de hoje? E Bolsonaro seria, de alguma perspectiva, um técnico para o Brasil?
Costumava comentar com o cronista Armando Nogueira: “Encompridamos os calções dos jogadores e encurtamos nosso estilo de jogar”. O futebol brasileiro, aliás, está entrando por um caminho errado, que é o de querer assimilar o estilo de jogo europeu. A chamada posse de bola foi criada por eles, ao perceberem que não dava para competir com a nossa Seleção, em jogos vitais. O jogador brasileiro conta com a capacidade e técnica individuais. Do Rivellino, do Pelé, do Gérson, do Garrincha, do Neymar. O brasileiro tem cintura, tem o drible, a negaça. Nele, há a ginga da capoeira.
Os europeus ficam no jogo burocrático. Desde 1958, combinamos o jogo coletivo com o talento individual. Quanto à política de Bolsonaro, não costumo perder tempo para discutir. O considero um acidente de percurso que não ficará na história. Foi um erro praticado na ânsia de se livrar do PT. Nos meus 93 anos vividos, nunca vi nada parecido. Em cinco anos nem lembraremos mais, quando o Brasil estiver recuperado. Gosto de citar a frase do Lucio Costa: “O Brasil não tem vocação para a mediocridade”. Lucio dizia que éramos maiores do que o abismo, e nele não cabíamos.
O que falta para o Brasil se reestruturar novamente no cinema?
O Brasil, como diz o Gabriel García Márquez, que escreveu sobre isso na revista inglesa Sight & Sound, é, ao lado dos Estados Unidos, o país com a maior vocação cinematográfica. O Brasil se afirma, não só pela dimensão continental, mas há a diversidade cultural, a riqueza paisagística. Transformando um pouco a frase: “O sertanejo é, antes de tudo, um forte”; o brasileiro é, antes de tudo, um criativo. Um povo incomparável. Não vai nisso nenhum chauvinismo, nada de nacionalismo rudimentar.
É uma realidade: na música, nas artes plásticas, na literatura, no cinema. É pena que não hajam políticas voltadas para participar desse grande mercado que hoje é a indústria do entretenimento e do lazer cultural. É uma pena que o Brasil não tenha despertado, os poderes públicos brasileiros não despertaram ainda para a importância, não só cultural, social, mas como economia.
Em pesquisa e relatório da Price Waterhouse, de prestígio mundial, houve divulgação de que, em 20 anos, a cifra de negócios da indústria do entretenimento e do lazer cultural atingiu US$ 2,2 trilhões no mundo. No Brasil, há potencial na cifra de negócios da indústria do entretenimento, que envolve cinema, teatro, indústria editorial, a moda, o design e a indústria da cozinha brasileira.
Que perspectivas de trabalho existem, com a pandemia?
No cinema, em plena pandemia, estamos terminando agora um filme, que é uma comédia familiar, em que Glória Pires faz o papel de uma avó que procura incutir nos seus netos os bons costumes e o bom estilo de vida. Chama-se Vovó Ninja e estamos rodando. Estará pronto assim que o mercado se recompuser. Em desenvolvimento, com o grande acervo da Copa e do futebol brasileiro, iniciamos o documentário O Brasil de todas as Copas. Na HBO, exibimos o seriado A escravidão no século 21, que mostra essa chaga enorme da sociedade brasileira que é trabalho escravo.
Temos um trabalho escravo muito maior do que na época da escravidão mesmo, na época do Império. Hoje em dia, a Lucy (esposa) e eu somos apenas consultores. O destino da nossa produção está todo comandado pela Paula Barreto, Marcelo Santiago e Bruno Barreto. Para 2022, há um projeto da Lucy Barreto que chama Madame, e conta a história da Guerra do Paraguai; essa guerra, esse genocídio, um outro genocídio, acontecido em tempos remotos.
Por que o Brasil não ganha o Oscar, e como viu o reconhecimento de Bacurau em Cannes?
No Festival de Cannes, participamos com grande sucesso desde os anos 1960, 1950. Já ganhamos a Palma de Ouro com O pagador de promessas. Houve prêmio especial do júri com Terra em Transe, ganhamos prêmios da imprensa internacional com Vidas Secas. Bacurau e outros filmes vão seguindo essa tradição, comprovando que o cinema brasileiro é um cinema de vocação internacional. No Oscar, também temos uma participação muito especial. Por vezes, fomos finalistas. O cinema brasileiro, dos anos 1960 para cá, se transformou num cinema muito cultivado na Europa, nos Estados Unidos e até na Ásia.
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