Observação, ação e reação: como num campo minado, o premiado diretor italiano Gianfranco Rosi apostou numa jornada pelo Oriente Médio, por três anos, para a realização de Notturno (filme no streming da Mubi, plataforma que abriga importantes filmes do documentarista). “É um filme perfeito para a era pré-pandemia. A produção tem algo que representa exatamente o que está acontecendo no mundo agora. É um sentido de futuro que está suspenso: há silêncio e há distância”, conta o realizador, em entrevista exclusiva ao Correio.
Gianfranco, aos 57 anos, esclarece que, em Notturno, coloca em primeiro plano a dor das pessoas, inicialmente desconhecidas, com as quais partilhou a jornada. “O ponto comum entre elas é a dor e a incerteza do que está próximo. É o trágico do destino condicionado à traição da história que os acompanha, numa condição universal para Síria, Iraque, Líbano e Curdistão. Eles vivem num mundo doloroso, com tanta morte”, sintetiza.
A intervenção norte-americana em toda a área de interesses não passa sem sinalização no novo filme do competidor do Oscar, disputado há três anos com o longa anterior Fogo no mar. “Há uma única bandeira em cena: a americana. Esta bandeira ostentava grandes coisas vergonhosas, ao deixar os soldados curdos abandonados à sorte e cederem o norte da Síria, Rojava, ao povo turco e russo”, diz, apontando combustíveis para a perpetuação de ditadores.
O filme de Gianfranco Rosi deixa entrever feitos pessoais impagáveis. “Eu me sinto muito orgulhoso, porque pude mudar algo por lá. Tenho uma fundação com a qual construí mais um orfanato no local, pude oferecer luz, com a compra de geradores, comprei um barco para Ali (um dos personagens), agora ele pode se tornar pescador, e deixar a frente de guerra”, destaca.
» Entrevista / Gianfranco Rosi, cineasta de Notturno
Temos terríveis valores expostos no seu documentário. Eles derivam de governos desinteressados dos cidadãos?
O eixo do mundo está deslocado: não temos mais ponto de chegada. Algo está de ponta-cabeça. Há elementos em dimensões diversas, convivendo. Olhando um enorme território como o qual lidei para o filme, percebi camadas. Eu acho que a melhor parte do filme está no teatro, quando personagens de um hospital psiquiátrico tratam de tudo: de corrupção a regime nada democráticos. Quero falar justamente sobre corrupção, falar de falsas fronteiras, criadas em meio à bagunça. Essa é, infelizmente, a história do Oriente Médio. Quem paga o preço de tudo isso são as pessoas. Por isso intitulei o filme de Notturno. É um filme articulado na meia-luz, repleto de sobreposições. Queria apresentar coisas inéditas, o filme é silencioso e apresenta o vazio de lá. Tudo traçado na incerteza e nos marginalizados.
Como unificar tanta diversidade num só documentário?
Foi muito difícil imergir na realidade e dispensar fronteiras, pois lidei com o limite invisível de estratificação de países. A abordagem que prezei foi a da memória e da dimensão humana. Analisei os falsos limites estipulados em 1916. E o filme se torna uma dramática parábola sobre a traição da história. A fronteira, que divide e separa, tornou-se, para mim, um local de um encontro. Entreguei a bússola da história para aqueles que encontrei no caminho. Óbvio: o filme também é sobre política, sobre guerra. Guerra, em si, é sobre compromisso, adoção de estratégia, sobre mediação entre inimigos e demanda corrupção e violência. Trato de coisas que atingem a vida a poucos quilômetros do palco da guerra, e, na resistência que encontrei, a vida sempre continua.
Mulheres são combatentes, mas igualmente sofrem. Poderia comentar isso?
As protagonistas do meu filme também são mulheres, vítimas, ao lado das crianças. Os homens morrem nos campos de batalha. Na fronteira entre o Irã e Iraque, três milhões de pessoas já morreram. Deixam órfãos e viúvas. Ali, um dos personagens, é forçado a se tornar um homem, aos 12 anos. As mães intensificam papéis também. Eu ainda não metabolizei a experiência, mesmo quatro anos depois. Há dor e crueza que não expus no filme. Não queria ser sensacionalista, queria imortalizar a dor expressa no filme. Alguns dizem que coloquei muita beleza no filme. Acho que é o que Pier Paolo Pasolini detectou como o “esplendor de verdade”. Enveredei para questionamentos da linguagem do cinema. A distância é o que traz a realidade para um documentário. Eu não queria a câmera saltando e perseguindo eventos.
Há como salvaguardar a humanidade em meio àquelas regiões retratadas?
Busquei a intimidade da realidade. Quis apreender a síntese da vida deles. Dois dos personagens não emitem uma palavra, mas transportam você para um campo de questionamentos. O silêncio é mais poderoso do que qualquer pergunta ou resposta. Ali, por exemplo, é um menino que nunca diz na palavra e, no final do filme, é o seu close-up que traz maior entendimento do que qualquer entrevista ou interação. Há exatamente a noção do futuro mundial que está suspenso para ele. O olhar dele encerra o registro de minha jornada.
Indiretamente, seu filme aponta para uma vida de isolamentos, a exemplo do que vivemos...
Compreendi melhor o filme, durante a pandemia, trancado em casa. Somos privilegiados: não temos guerra, contamos com casa, comida. Editando o filme, cheguei ao registro de suspensão da vida, em que o inimigo é invisível. Lá, com as explosões, há perigos constantes. Não ao acaso a verdade no meu filme é acessada num hospital psiquiátrico, com uma peça teatral, por pessoas afetadas pela guerra. Eles vivenciam fatos desde o período colonial. E desembocam num futuro em que jovens tentam implantar mudanças. Meu objetivo era entender o que o sistema corrupto devorava: consome crianças, caçadores, soldados. Quis fazer um filme com visão para o futuro. Apostei em arquétipos. São universais e fortes, independem de política e de geografia.
É justo numa ala de sanatório se entender muito da gênese do Oriente Médio bélico?
A contradição está ai. A verdade exalada do hospital psiquiátrico. Há um ditado popular do Oriente Médio: “A verdade brota da voz da loucura”. Não escrevi isso no filme: veio naturalmente, na minha frente. Para todo o filme, eu não criei roteiro. Tudo veio às minhas mãos, como que por acidente. A guerra está sempre a alguma distância. Você escuta sempre ao fundo as rajadas e explosões. Acordava com tiroteios e dizia: “O que aconteceu?” E respondiam: “Alguém está lutando”. Você nunca sabe exatamente quem. Fui aos bombardeios e às regiões, mas percebi que seria outro filme.
Com tantos crimes contra a humanidade empilhados, dá para ter esperança?
Filmei a confusão do que está à meia luz. Você me pergunta se há luz no final do túnel? Eu não sei se há luz, mas talvez sim. Países da Europa e América fazem a corrida para ter acesso à vacinação. Começamos a construir paredes, paredes e paredes, novamente. Elas sempre existiram mas nunca contribuíram para um crescimento da sociedade. Como podemos pensar sobre esperança quando você sabe que há uma corrida do país rico para vacinar seu próprio povo. Ninguém diz: como fica a África?; o Oriente Médio, sem hospitais, em que não se computam os mortos? Quantos morreram no Iraque, no Líbano, na Síria? Centenas de milhares de pessoas morreram nesses lugares e na Índia. A imunização é algo que nunca ocorrerá. Temos de deslocar o olhar das barricadas, dos muros.