“É um grito de socorro de uma comunidade excluída”. É assim que a escritora Eliane Potiguara define no prefácio de Tybyra: Uma tragédia indígena brasileira, livro escrito por Juão Nyn. A obra em questão, recém-lançada pelo selo Doburro, é um monólogo, em formato de roteiro teatral, que acompanha o personagem-título que fora condenado à morte e teve a execução citada no livro Viagem ao Norte do Brasil feita nos anos 1613 e 1614, do frade francês Yves Debreux.
Na obra de Nyn, o indígena ganha identidade e, mais do que isso, representa a parte da história sempre invisibilizada. “Decidi colocar só as falas e o lado de Tybyra, porque o outro lado, desde 1500, a gente tá cansado de saber, né? Diante das lacunas formadas pelas ausências, cada um pode imaginar o que puder, diante da fertilidade do terreno da mente”, explica o autor em entrevista ao Correio.
Juão Nyn é formado em teatro pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), mas, até escrever Tybyra, se dedicava a outras linguagens artísticas, mesmo que todas tivessem a temática indígena como norte. Ele conta que a escolha por fazer um monólogo teatral se deu por uma combinação de motivos, entre eles por ter sido a primeira manifestação artística a fazer parte da colonização, por meio do ensino do português aos índios feito pelo Padre São José de Anchieta. “Gosto de pensar que a minha meta é reverter tudo isso. Escrever (sobre índios) dessa forma foi uma descoberta, nunca me imaginei dramaturgo, mas sou compositor e sempre fui ator, criador”, completa.
Espaço
O livro é escrito em tupi-guarani, uma das mais de 270 línguas nativas da América, e em “potyguês”, um manifesto literário semelhante ao português com apenas uma exceção. O “idioma” criado por Juão Nyn se apropria do “y”, letra sagrada em tupi, aparecendo em substituição ao “i”. O modo é uma espécie de demarcação para o autor.
Tudo em Tybyra é político. A intenção de Juão Nyn é exatamente ocupar o espaço renegado aos indígenas. “Existem muitas pessoas como eu, seja nas cidades seja nas aldeias, invisíveis, desvalidadas. Por falta de maturidade nas discussões étnico-raciais, o Brasil se construiu em cima de uma birracialidade, então a gente não é visto e, quando olhados, não reconhecidos. Indígena não é raça. Temos etnia e, dependendo da nação, abarca-se de diferentes formas a miscigenação. Mas só demarcaremos espaços concretos, lugares de dignidade para habitar, quando demarcamos imaginários. Precisamos exercer nossas naturezas independente de qualquer colonialidade ainda presente, assim construímos novas narrativas, que viram realidades”, analisa Nyn.
Atualmente, o autor planeja lançar uma segunda dramaturgia com o recorte indígena na época da ditadura militar. “Quero radicalizar essa proposta de demarcar os territórios do imaginário e os territórios físicos, ousar mais e ficcionalizar dados documentais e seguir deformando o mundo colonial”, anuncia.
Cinco perguntas // Juão Nyn
Você é uma pessoa bastante artística. O que te motivou, então, a resolver comunicar por meio da escrita no livro Tybyra?
Acho engraçado falarem que sou bastante artístico, porque não consigo separar o fazer arte do viver. Não saberia existir de outra forma, se não estranhando o mundo pelo que chamam poesia, portanto, criando. Acho que tem muita gente assim, né? “Todo mundo nasce artista, depois vem a castração...”. Então, por isso vão nascendo coisas, ano passado foi Tybyra. Acabou virando meio de transmissão para muita coisa que habitava dentro de mim e eu sempre colocava pra fora de forma equivocada ou insuficiente. Tybyra foi essa energia artística espiritual que encaixou perfeitamente, me fez mais feliz e parece fazer um sentido danado também pra outras existências.
No posfácio você fala de um problema que ainda existe, da história e da cultura indígena ser tratada pelos brancos. Existem ainda poucas produções ou elas não estão sendo olhadas?
Não estão sendo olhadas. Temos centenas de escritores e acadêmicos indígenas incríveis deslegitimados. Durante muito tempo a identidade indígena foi construída como temporária, “saiu da aldeia, não é mais indígena”, nunca pela perspectiva étnica. Então busca-se uma romantização, o indígena mais indígena, como se existíssemos só no passado, numa grande hipocrisia, onde no presente, somos o país com maior população isolada do mundo, e o garimpo contamina com mercúrio o peixe que comem. Serão eles menos indígenas por comerem nossa poluição? Então, estamos por aí, enxerga quem tem interesse e consciência pra ver.
O quão difícil ainda é conseguir esse espaço de fala e protagonismo?
Não queremos protagonismo, não acreditamos em topo, queremos respeito e dignidade para coexistir, mas nunca pediram licença. Nossas cosmovisões, culturas e modos de viver seguem sendo deturpadas e usurpadas. Não vivemos em cima de um cemitério indígena, somos o próprio. Insistem em nos enterrar vivos.
Cidade invisível (que também trata da questão indígena) da Netflix estreou criando polêmica. Qual é a sua opinião?
Já que equivocadamente somos colocados dentro da categoria de raça, não temos democracia racial, concorda? Na verdade, sem demarcação de todas as terras indígenas, nem democracia temos, vivemos um ensaio. Os movimentos indígenas estão pulsando, tentando dizer: “Precisamos que cedam espaços hegemônicos para que outras pessoas (e grupos) possam fazer. Há 1.520 anos, vocês sempre puderam fazer tudo. Parem, por pelo menos 1.520 meses. O progresso indígena está em curso, em todas as camadas.
No livro, você fala sobre os encantados, e esse foi um ponto de polêmica na série e sobre o folclore em si. Você poderia explicar o que são os encantados e qual a importância deles para vocês?
Essa cosmovisão não pertence a todos os povos indígenas com esse termo. Para povos do tronco Tupy, Encantados são os espíritos da natureza que, assim como ela, não possuem fronteira entre bem e mal. A importância? Somos a própria natureza, cuidar de um é estar cuidando do outro, não há dissociação.
Tybyra: Uma tragédia indígena brasileira
De Juão Nyn. Selo Doburro, 110 páginas.
Preço médio: R$ 30.
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