Quando começou a escrever Então você quer conversar sobre raça, Ijeoma Oluo tinha em mente o leitor americano. Filha de um nigeriano com uma americana branca, premiada com o Humanist Feminist Award em 2017 e autora de colunas em veículos como The Guardian, Washington Post e New York Magazine, ela queria produzir um livro capaz de conversar com as pessoas sobre questões de raça de forma didática, mas sem deixar de ser contundente.
Ijeoma desejava, sobretudo, que o livro fosse acessível a muitas pessoas. “Quando comecei a escrever foi porque eu queria encontrar um livro que tivesse o tema da raça e que ativistas, escolas e faculdades pudessem usar. Não havia um livro assim e eu realmente queria preencher uma lacuna fazendo um livro que realmente ajudasse as pessoas a entender as questões de raça e racismo. E que ele ajudasse a resolver problemas reais do dia a dia”, conta. Então você quer conversar sobre raça acabou na lista de mais vendidos do The New York Times e entrou para a prateleira de livros fundamentais na abordagem do racismo e de como ele se projeta na sociedade. Temas como misoginia, justiça social, desigualdade e feminismo, que sempre estiveram presentes em seus artigos, também permeiam o livro.
A autora parte de situações corriqueiras do dia a dia, muitas vezes com exemplos pautados em experiências próprias ou de pessoas próximas, para aprofundar questões como o racismo estrutural, a interseccionalidade, as diferenças de gênero, as ações afirmativas, a apropriação cultural e a violência policial. Efetivar ações concretas e sair de conversas sobre esses temas com resultados positivos que possam ter reflexo na maneira como as pessoas pensam e agem é um dos maiores objetivos de Ijeoma. “O livro desmitifica um monte de coisas e torna menos difícil e menos assustador falar de temas relacionados a raça e racismo”, acredita.
Para ela, que cresceu em um ambiente de relativa pobreza e de valorização da educação formal e do conhecimento, um dos pontos deixados de lado quando as pessoas discutem sobre raça e racismo é a efetivação de ações concretas para combater o problema. “Achamos que, se nos entendermos melhor, isso vai magicamente consertar o racismo”, diz. “Mas o racismo precisa de ação, de uma solução ativa e, se você não tiver essas conversas com o foco em ações que podem ser realizadas, então não será uma conversa efetiva. Muitas pessoas pensam que, porque essas conversas são difíceis, estressantes, ou porque aprenderam algo, acham que eles fizeram algo, Mas quando pensamos em como o racismo impacta a vida das pessoas, falamos de salário, saúde, bem-estar e essas coisas precisam de ação.”
Foi nas redes sociais que a autora começou um ativismo mais focado, mas foi no dia a dia que ela percebeu as limitações de conversas que, frequentemente, acabavam com mágoas e nenhuma transformação. Ela começou a escrever artigos por frustração e brinca que eles nunca foram o que chama de “opiniões quentes”: eram baseados no que parecia ficar de lado quando as pessoas conversavam sobre racismo. E, no livro, ela faz um alerta: o conteúdo não é para transformar racistas em não-racistas, mas para apontar como o racismo sutil e contínuo pode ser violento e destrutivo. “Não existe um país no mundo, mesmo aqueles de maioria negra, que não tenha sido tocado pela supremacia branca. E enquanto pudermos reconhecer isso e construir redes de solidariedade em uma economia globalizada e numa cultura global, podemos trabalhar juntos para dar um fim a isso”, garante.
Formada em Ciências Políticas, Ijeoma chegou a trabalhar em empresas e instituições da área antes de começar a viver da escrita. Além de Então você quer conversar sobre raça, publicou também Mediocre: the dangerous legacy of white male America (“Mediocridade: o legado perigoso da América branca masculina) e The badass feminist coloring book (“O livro de colorir das fodonas feministas”), um livro de colorir que reúne figuras de grandes feministas negras acompanhadas de citações.
Quatro perguntas para Ijeoma Oluo
Seu livro tornou-se um best seller e ocupa uma lacuna que, nos últimos 10 anos, tem sido preenchida por novas vozes do feminismo negro. O que você acha que mudou nessa última década em relação a esse ativismo?
Quando eu penso sobre os últimos 10 anos, se melhoramos? Eu diria que, às vezes, socialmente, avançamos um pouco, mas institucionalmente, não. Sistemicamente, não. A maneira como pessoas negras e pessoas de cor transitam por nossa sociedade permanece a mesma, sem mudanças. Se falarmos sobre salário, saúde, promoções, quase nada mudou. Infelizmente. Mas acho que a maneira como falamos sobre raça e racismo está mudando, parcialmente porque a internet quebrou várias barreiras e permitiu que escritores negros escrevessem sobre suas experiências. Esse tipo de meio democratiza a fala e estamos falando disso de forma diferente, somos todos parte desse esforço. Mas não acho que isso tenha se traduzido em mudanças sistêmicas.
Quais mudanças você acha que são mais relevantes na discussão sobre racismo desde que a internet se tornou um espaço público de discussão?
Acho que a internet é vital, precisamos encará-la como se fosse vida real, porque ela é cada vez mais importante não só para o trabalho antirracista, mas para o racismo. Temos uma espécie de oposição de forças que encontra força na internet. O antirracismo cresce na internet, mas a atividade de brancos supremacistas racistas também, eles conseguem recrutar e espalhar suas propagandas. Por isso esse é um espaço no qual precisamos prestar atenção. O que vimos no Capitólio em 6 de janeiro começou na internet e acabou se tornando uma insurreição real, na vida real, então precisamos ficar atentos para o fato de que a internet não existe somente como um espaço virtual, é muito importante e impacta o que ocorre na vida real.
Por que é tão difícil países como o nosso, que tiveram economias baseadas na escravidão durante tanto tempo, compreenderem hoje o que é e como funciona o racismo estrutural?
Acho que a razão é deliberada. Não é uma incapacidade de entender, é que essa compreensão foi deliberadamente tirada da gente. Quando você tem uma história de escravidão, sociedades onde pessoas eram vendidas e compradas, você tem um sistema econômico construído em torno de um violento racismo. Não é possível dissociar a escravidão de um sistema econômico, político e cultural baseado em um racismo violento. Para manter esses sistemas funcionando, em vez de refazê-los, fomos ensinados que o racismo não está no sistema. Que, com o fim da escravidão, o racismo se foi. Mas as pessoas que faziam dinheiro com a exploração de populações de cor, em especial os corpos indígenas e negros, eles ainda têm o poder e constroem sistemas que asseguram que eles tenham lucros. E nós somos as pessoas exploradas para que eles tenham esse lucro. Mas se você disser que isso acabou com o fim da escravidão, então você não tem que desistir desse poder e reestruturar o sistema. Na escola, somos ensinados que não houve racismo na maneira como se deu a transição da escravidão para o nosso sistema atual, nosso sistema econômico, agrícola. É muito deliberado. Espero que as pessoas entendam que não quer dizer que elas não são espertas se não entendem e sim que nosso sistema educacional foi desenhado para abrigar essas ideias.
O Brasil é um país que há muito vem acreditando no mito da democracia racial. Por sermos muito misturados, às custas da violência do estupro durante a escravidão, e por acreditarmos que o brasileiro tem natureza pacífica, o que tem se mostrado cada vez menos real, acreditamos também que não há racismo no país. Que conselhos você daria para pessoas que perpetuam esse mito?
Uma coisa importante é sempre olhar e categorizar quem tem sido beneficiado pela escravidão. Porque é claro que, no Brasil, as pessoas não foram beneficiadas igualitariamente. Você tem uma população dividida por cor e gênero, que não foi beneficiada. Quem cresceu e se enriqueceu e quem não? É preciso quantificar. Uma das coisas que levam as pessoas a dizerem que não existe racismo é que, na verdade, não quantificamos. E tudo pode ser medido. Podemos medir quem vive em periferias pobres? Quem tem falta de serviços públicos? Quem é mais provável de ir para a prisão e quem não é? Quantificar isso, olhar para a história e se perguntar por que e como o sistema perpetuou isso é muito importante. Temos que fazer isso, mas também escutar e entender que se é algo sobre o qual eu não ouço falar é provável que seja porque as pessoas da minha comunidade não são impactadas por isso e isso é um sintoma de racismo. Podemos olhar os números no Brasil e em outros lugares, há uma estratificação da população: algumas pessoas estão muito bem, e outras não. E boa parte disso tem uma base racial. Se você mora no Brasil e não consegue ver, isso significa que você é parte de um substrato social que não sofre com isso e aí você tem que fazer o seu trabalho e tentar entender e se perguntar: “quem eu não estou ouvindo?”. Porque a verdade é que as pessoas pobres no Brasil, as oprimidas e exploradas estão falando sobre o que acontece com elas, mas são caladas o máximo possível. Eu diria: procure, ajude essas vozes a serem ouvidas.