Meu mundo versus Marta é, sem dúvida, a história em quadrinhos mais hermética lançada este ano. Não há balões nem narração no argumento de Paulo Scott desenhado por Rafael Sica. Há pouquíssimas indicações sobre os personagens, especialmente sobre o protagonista. Enigmática, a história acompanha o dia a dia de um ser que parece humano, mas sabe-se lá se é realmente. Ele circula livremente de um lugar a outro em uma cidade aparentemente tomada pela tensão e pelo caos. Mas há algo nesse protagonista que o torna especial, isento das aporrinhações de uma sociedade que parece ser altamente controlada, empobrecida, reprimida e decadente.
É, o leitor se dá conta, um cenário distópico. O personagem é temido, embora pareça inofensivo até metade da história, quando se percebe que ele pode ser um robô, uma arma letal. Guerra e arma, aliás, são as poucas palavras presentes no desenho e estão estampadas em muros e quadros. “Esse homenzinho, essa figura masculina é um ser que não se conhece a procedência e ele chega diante da humanidade em crise, ele é uma ameaça”, explica Scott. “E essa bio robô, que em um dia se transforma, é só parte desse pacto de celebrar essa contenção de uma arma que pode eliminar toda a humanidade quando quiser. E você vê que ele está num contexto fascista e que é uma coisa sempre latente.”
Scott escreveu o argumento em 2011. Foram sete páginas produzidas em pouquíssimo tempo e entregues a Sica para que, delas, extraísse a HQ. Não foi a primeira experiência de parceria com um autor de quadrinhos: em 2011, ele publicou O monstro e minotauro com Laerte. Também não é a primeira vez que se aventura por cenários distópicos. Isso se anuncia em Habitante irreal e em Garopaba monstro tubarão. “Precisamos perceber que o Brasil é um país distópico. Essa desigualdade social, com uma elite super-rica, egoísta, iletrada e orgulhosa da sua ignorância, ávida pela manutenção do seu status nos torna campeões entre os cinco países mais desiguais do mundo. Isso é distópico. E temos, na atual conjuntura política e na figura do presidente, uma mera consequência dessa opção distópica da elite covarde, preguiçosa e suicida brasileira”, diz o escritor.
Rafael Sica encarou a construção de Meu mundo versus Marta como se fosse um gênero musical. “O texto tinha uma linha narrativa muito sólida, mas com muito espaço para o improviso. Foi como um jazz. Não era um roteiro tradicional, com descrição de cenas, planos e cenários. Era um texto que possibilitava a minha interpretação da história, a minha interpretação como leitor, pra só depois me colocar como desenhista e transformar texto em narrativa visual”, conta.
Sobre a ausência de balões e narrativa, Sica acredita que eles eram desnecessários. “Acho que o silêncio e a linguagem corporal abrem ainda mais a narrativa, deixa mais sugestiva. Quando entra algum tipo de texto em Marta, entra como enigma.”, diz. No roteiro, não havia sequer diálogos, um ponto importante para topar a parceria com Scott, que credita ao ilustrador todo o mérito da HQ. Para Scott, quadrinho é uma linguagem fundada no desenho e apenas Rafael Sica poderia dar forma ao argumento de Meu mundo versus Marta. “Em qualquer graphic novel, o trabalho é do desenhista, é obra do desenhista. No nosso caso, meu e do Rafael, mais ainda, porque eu concebi o argumento e o projeto sabendo que as elipses e os hermetismos da minha narrativa seriam plenamente solucionados na estética do Rafael. Porque ele joga uma lente sobre a existência de uma maneira que raríssimos desenhistas e quadrinistas fazem no mundo”, garante Scott.
Meu mundo versus Marta
De Paulo Scott e Rafael Sica. Companhia das Letras, 160 páginas. R$ 84,90
» Três perguntas para Rafael Sica
Podemos dizer que é uma HQ bastante hermética? Como você descreveria esse personagem que, no início, parece um pacato cidadão e se transforma, aos poucos, em uma arma?
Não concordo que seja hermética. É sim uma história cheia de portas, cheia de possibilidades interpretativas. No caso, a criatividade do leitor é fundamental. Como não tem diálogos em balões, o que geralmente guia uma leitura de HQ, é preciso ler e interpretar imagens.
Solidão e violência são palavras que você associa à HQ? Como elas estão ligadas ao personagem e ao contexto e da história?
Sim, são palavras que podem ser facilmente associadas à história. Existe ali um constante clima de tensão, de sufocamento, frutos de uma violência externa que não é só física, mas também psicológica. A personagem central ali, tentando manter uma certa rotina e uma certa ordem no caos, até que uma hora tudo vai pelos ares.
Como Meu mundo versus Marta ( MMXM) dialoga com o contexto atual do Brasil?
Acho que essa pode ser mais uma camada de leitura, traçar parâmetro com a realidade atual. Mas prefiro deixar por conta dos leitores. Mas MMXM tem sim um pé firme na realidade e um pé em outro lugar.
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