Conexão diplomática

Itamaraty refém da pandemia

Continuava incerto o futuro do Itamaraty, ontem, quando o ministro Ernesto Araújo acompanhou o presidente Jair Bolsonaro na reunião de cúpula (virtual) comemorativa do 30º aniversário do Mercosul. O encontro foi convocado com o bloco sob presidência da Argentina, que vem de suspender todos os voos com origem ou destino no Brasil, hoje identificado como o epicentro da pandemia.
O presidente, que deixou a reunião mais cedo, e o chanceler, ameaçado de sair do cargo antes da hora, pouco tiveram a contribuir para as discussões. Sem política nem planejamento para combater a escalada do contágio e das mortes por covid dentro das fronteiras, o país declina da liderança esperada na vizinhança para a difícil e necessária retomada econômica no pós-pandemia.
Mais até do que os parceiros em outros cantos do planeta — cantos entendidos apenas como figura de linguagem, já que a Terra é como é —, a América do Sul responde à crise sanitária à base do cada um por si, na ausência de liderança regional.

Vai de táxi?

A intenção original do anfitrião, Alberto Fernández, era celebrar a data com os colegas em pessoa, mas a disparada da covid no Brasil frustrou os planos. Bolsonaro chegou a confirmar a presença, decidido a aproveitar a visita para dissipar os mal-estares de 2019, quando tomou partido pela reeleição do direitista Mauricio Macri na disputa pela Casa Rosada. Além de se recusar a cumprimentar o novo colega, classificou publicamente como “desastre” o retorno do peronismo ao poder, com Fernández e a vice, Cristina Kirchner.
A suspensão dos voos entre Brasil e Argentina inspirou piada sobre as dificuldades que a comitiva poderia enfrentar para o deslocamento físico à capital vizinha. “Iam voltar como? De táxi?”, provocou um diplomata insatisfeito com a atual condução do Itamaraty.

Balança...

As horas que antecederam a cúpula do Mercosul foram de expectativa algo ansiosa, entre os emissários estrangeiros, pelo desfecho do enredo no Itamaraty — drama para uns, opereta para outros tantos. A quinta-feira foi dia de pressão extrema para o embaixador Ernesto Araújo. A Câmara dos Deputados, de manhã, e o Senado, à tarde, submeteram o chanceler a duríssimas audiências em que foi cobrado o desempenho do MRE na ação diplomática indispensável para garantir a vacinação em massa contra a covid.
No fim do dia, nada menos que sete senadores reclamaram em público a renúncia do titular das Relações Exteriores. Os presidentes da Câmara e do Senado endossaram as críticas praticamente unânimes — destacou-se a voz dissonante do deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP).

...mas vai cair?

Embora tenham sido cogitados até nomes para substituir o chanceler, a semana chega ao fim sem que o Planalto sinalize mais claramente como responderá à pressão crescente na própria base parlamentar. Analistas políticos apostam que a cabeça de Araújo, tido por discípulo do “guru” Olavo de Carvalho, estaria no cardápio oferecido ao presidente pelo Centrão, como parte do acordo para sustentação política do governo.
Se lhe parece

Formalidades à parte, o Legislativo e os governadores seguem ocupando, na diplomacia real e prática, o vácuo aberto pela disfunção do Planalto e do Itamaraty no enfrentamento da pandemia. Coube aos presidentes das Comissões de Relações Exteriores do Senado e da Câmara — respectivamente, Katia Abreu (PP-TO) e Aécio Neves (PSDB-MG) — enviar carta à OMS para gestões sobre a aquisição de vacinas. Antes, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), tinha se dirigido em tom semelhante à vice-presidente dos EUA, Kamala Harris, que preside a Câmara Alta em Washington.
Enquanto congressistas e governadores fazem gestões próprias, em nome da federação, falando a parceiros com os quais o presidente e o chanceler se indispuseram, Bolsonaro sinalizava ainda ontem com a manutenção de Araújo no cargo — ainda que apenas para não sugerir que seria o Congresso a demitir um ministro.
Na prática, os parceiros externos, cada vez mais, interpretam o comando do Itamaraty segundo a máxima de Luigi Pirandello: “Assim é, se lhe parece...”
Agro (ainda) é pop

Foi no Senado, como se desenhava desde a renovação da presidência da Comissão de Relações Exteriores, que o ministro conheceu na pele o sentido de “fritura” no jargão parlamentar. Se não haviam faltado petardos lançados pelos deputados na audiência da manhã, na Câmara Alta ficou à mostra o ânimo para o xeque-mate. Chamados à renúncia ou mesmo à demissão do chanceler partiram do PT até o MDB, passando por Rede, Cidadania e até pelo PSDB, na voz do ex-governador Tasso Jereissati (CE), um dos cardeais da legenda.
A audiência no Senado ratificou a avaliação corrente de que a política externa traçada por Bolsonaro e Araújo enfrentará marcação cerrada, com Katia Abreu à frente da comissão permanente dedicada à pasta. Mais do que na condição de ministra de Dilma Rousseff, foi como porta-voz do agronegócio que a senadora por Tocantins presidiu a fritura do chanceler em tempo real. Justamente um dos setores mais afinados à candidatura do presidente, em 2018, hoje se ressente dos entraves criados por ele para o fluxo das exportações de produtos primários com destino a mercados como os da China e do Oriente Médio.