Temas fortes, engajamento e disposição para abrir, a partir de trincheiras, espaço no mercado audiovisual. Mulheres, cada vez mais, participam de um processo inclusivo no fazer cinematográfico. Exemplo das conquistas, vem em casos como o da diretora bósnia Jasmila Zbanic que, pelo filme Quo Vadis, Aida?, emplacou a segunda indicação para o Oscar de uma fita feita na Bósnia e Herzegovina, duas décadas depois da vitória do filme Terra de ninguém. Nove países coproduzem a encenação do massacre em Srebrenica, de 1995, no qual sérvios, indiscriminadamente, mataram bósnios, numa escala de quase 8.400 vítimas. Uma professora imersa no universo da Tropa de Paz das Nações Unidas protagoniza dramas universais. Depois de brilhar em festivais como os de Veneza e Toronto, Jasmila Zbanic tenta ainda o Bafta (importante troféu inglês) pela melhor direção.
Também contando a história de uma professora, mas afundada na cultura do cancelamento (por causa de cenas de sexo dela vazadas na internet), Bad luck banging or loony porn foi o filme do romeno Radu Jude que abriu recentes discussões, e venceu o prêmio máximo no enxuto 71º Festival de Berlim. Produzido por Ada Solomon, o longa critica atuações religiosas e militares, no escândalo que desestrutura a professora, abatida pelo convívio com máscaras e pandemia.
Nas discussões entre equiparação de gêneros, o Festival de Berlim apostou na corajosa quebra de prêmios reservados a atores e atrizes, unificando o troféu conferido simplesmente a melhor atuação. No filme da alemã Maria Schrader, I´m your man, a atriz Maren Eggert faturou o Urso de Prata. No longa, por três semanas, a fim de financiar estudos, uma cientista aceita a proposta de conviver com um humanoide criado para ser o parceiro ideal na plenitude da felicidade feminina. O Festival de Berlim ainda coroou duas mulheres: a estreante atriz coadjuvante húngara de 20 anos Lilla Kizlinger, vista em Forest — Te vejo em todos os lugares; e a documentarista Maria Speth, que assinou Senhor Bachmann e sua classe, sobre a crise no sistema educacional europeu, mas que aponta um docente como fonte de inspiração. Inspiração, aliás, é matéria-prima no rico caleidoscópio da criação feminina. Confira, abaixo.
Poética cena árabe
Com encontro em 7 de abril, às 17h, propiciado pelo Women and Film and Television do Brasil, as poetas Annamarie Jacir e Nujoon Al-Ghanem abrirão os festejos da mostra Mulheres Árabes: Cinema e Poesia, com caráter gratuito, pelo www.todesplay.com.br. Além de sarau, um leque de filmes será oferecido na programação. Com reconhecimento em Berlim, Cannes e Veneza, Annamarie Jacir responde pelo primeiro filme dirigido por uma palestina Sal deste mar (no programa, dia 10 de abril, às 17h). No longa, Soraya cata as origens da família exilada em 1948 na Palestina, depois de vida agitada em Nova York. Com mais de 20 filmes no currículo, Nujoon Al-Ghanem apresenta (em 10 de abril, às 19h), o documentário Amal, em que, nos Emirados Árabes, uma trabalhadora síria é posta de escanteio, depois de cumprir a agenda num projeto estruturado para a tevê, num meio cultural adverso.
Outros destaques
A Marrom eterna
Alcione - Disponível em plataformas do Net Now, Google Play e Looke, o documentário O samba é primo do jazz, de Angela Zoé, cerca múltiplos campos da vida da cantora Alcione, desde a relação irreverente mantida com as pessoas mais próximas até, claro, o percurso profissional. Há 24 anos no ramo do cinema, Angela Zoé, formada em história e psicologia, levou o longa para eventos importantes como o Festival de Gramado.
Desilusão com a fama
Benedetta Barzini - Ícone feminista e musa para criadores como Andy Warhol e Salvador Dalí, a modelo Benedetta Barzini encabeça o documentário O desaparecimento de minha mãe, assinado pelo italiano Beniamino Barrese, filho da personalidade do universo das passarelas. Atração da plataforma www.filmefilme.com.br, a fita acompanha as naturais incertezas de Benedetta, que tenta se reinventar numa sociedade criticada pela aguda valorização do capitalismo que tanto a desestimula.
Nada comunista
As pequenas margaridas - Representante maior da nouvelle vague tcheca, a cineasta Vera Chytilová recebe homenagem pelo www.supomungamplus.com.br, atualmente com três longas dela na programação. As pequenas margaridas, de 1966, foi a mais recente aquisição. Considerado uma “farsa anarquista”, o filme mostra duas personagens batizadas como Marie envoltas num jogo de chacotas que desencoraja o clima de destruição percebido por ambas. No dia 26, Vera terá mais um filme exibido: Fruto do paraíso, que moderniza a relação entre Adão e Eva. O canal ainda tem se aplicado em projetar nomes como Jane Campion (O piano) e Isabel Coixet (A vida secreta das palavras).
Disposição nacional
Carla Camurati - Entre diferentes tipos físicos, etnias, identidades e classes sociais, as mulheres, com funções múltiplas na cadeia produtiva do cinema, deixam florescer caminhos inimaginados para a criação de narrativas e momentos marcantes nas telas. A prova está na lista de mais de 50 filmes destacados pelo 2º Festival Mulheres+ do Audiovisual, com caráter on-line e gratuito, na plataforma www.inff.online, do Inffinito Film Festival. Até 18 de abril, as realizações dos últimos cinco anos de diretoras, roteiristas, diretoras de fotografia e produtoras estarão em vitrine animada por debates e lives. Discussões com profissionais como Carla Camurati, Sabrina Fidalgo e Graciela Guarani entram em campo, com direito a amostragem criativa de talentos locais como os de Dácia Ibiapina, Cibele Amaral e Adriana Vasconcelos. Ao todo, 26 longas programados ficarão com acesso disponível por quatro horas (ao longo de um dia).
Contabilizando mais de 30 mil acessos na edição do ano passado, o Festival Mulheres+ do Audiovisual deste ano trará longas como a comédia Todas as canções de amor (de Joana Mariani), o drama O banquete (de Daniela Thomas) e o terror A sombra do pai (de Gabriela Amaral Almeida), incrementado por curtas representativos de regiões como Delfini Brasília, olhar operário, Espero que esta te encontre e que estejas bem (de Natara Ney) e o inédito Muribeca (de Alcione Ferreira), esse retratando uma comunidade expurgada de bairro comunitário em Jaboatão dos Guararapes (Pernambuco).
Entrevista / Flávia Guerra, crítica e cineasta
Como percebe, como espectadora, estar à frente de um longa dirigido por mulher?
Eu me sinto privilegiada. Afinal, por muito tempo a história das mulheres que ajudaram a construir o cinema (como a francesa Alice Guy-Blaché e a brasileira Cleo de Verberena) foi esquecida. E por muito tempo o acesso das mulheres aos meios para dirigir filmes foi muito difícil. Então, ver tantos filmes, hoje, de mulheres de todo o mundo me enche de alegria. Mulher não faz só o chamado “filme de mulher”. Mulher faz filme de guerra (Quo Vadis, Aida? é exemplo), faz filme de terror, faz filme de ação, faz comédia. Faz o que quiser e quem ganha é a gente.
Homens e indústria ainda relutam em entender transformações no sistema?
O recado que não só muitos homens (não todos, obviamente), mas a indústria toda ainda não absorveram é que quanto mais diversidade na frente e atrás das câmeras melhor para todos, incluindo espectadores. Isso porque a diversidade de olhares traz diversidade de temas, de histórias, formatos, abordagens, filmes. Nada melhor para a saúde de uma indústria cultural (pensando cinema como produto cultural neste caso) do que a diversidade. É bom para quem produz e para quem consome cinema ver histórias diversas na tela. Sair da mesmice, do lugar-comum, inovar é o que mantém algo vivo. E o cinema não é diferente.
Há avanços fortes?
Vejo um avanço grande no cenário internacional que se materializa no Oscar este ano. Nomadland (que traz um formato que não inventa a roda mas que sai do comum ao ter a estrela Frances McDormand atuando ao lado de pessoas reais, que compartilham com ela sua história) é dirigido pela primeira mulher não branca (Chloé Zhao) a ser indicado aos prêmios Oscar de filme e direção. A Chloé, desde que levou o Leão de Ouro em Veneza 2020, já levou mais de 50 prêmios. Sundance 2021 alcançou a marca de 50% de filmes dirigidos por mulheres este ano em toda sua programação. Há muitos outros exemplos, mas falo de dois grandes e americanos para pensarmos em perspectiva que este movimento da valorização da diversidade é real, é estratégico e diz respeito ao cinema hollywoodiano, que está sempre de olhos em bilheteria, mercado e, claro, cultura. E já sabemos que isso reverbera no mundo todo.