“Tô louco para sair desse sufoco/ Tô maluco pra parar no bar/ Encontro combinado na esquina/ Nunca firma/ Pra que combinar/ Agora ao combinado/ Cada qual no seu quadrado/ Sem aglomerar”. Este é um trecho de Novo normal, de Serginho Meriti e Xande de Pilares. O samba, cuja letra remete à interminável quarentena, parece ter Mart’nália como fonte inspiradora. Pode até não ter sido, mas a cantora a escolheu para ser uma das faixas de Sou assim até mudar, o álbum que acaba de lançar pela Biscoito Fino.
Mesmo sem se conformar com a situação, Mart’nália tem cumprido o necessário isolamento social. Mas não é só: deu um tempo com a cervejinha, tem experimentado o veganismo e — o pior —, por causa do uso da máscara, escondeu o sorriso largo, marca registrada da personalidade de uma das artistas de mais alto-astral da MPB. Inquieta, ela usou parte do tempo em que ficou longe dos palcos, sem encontrar os familiares e de se juntar aos amigos nos bares, para se dedicar à produção do novo CD.
Além de ter que se habituar com a nova realidade, de deixar o cabelo crescer, a cantora, no processo de gravação do disco, conviveu com uma nova experiência. A perda do amigo Arthur Maia — um dos maiores contrabaixistas da história da música brasileira, morto em 2018 —, que foi produtor dos seus trabalhos há vários anos, a levou a convidar outro profissional para essa função. O escolhido foi o compositor Zé Ricardo, conhecido como o coordenador do Palco Sunset do Rock in Rio, que também assina os arranjos com Maurício Piassarollo.
Mistura
Embora Mart’nália seja aberta a sugestões, principalmente da empresária Márcia Alvarez, na seleção do que gravar prevalece o gosto e a vontade dela. Assim, por seu filtro passaram todas as faixas do Sou assim até mudar. Adepta à mistura, entre as 10 músicas escolhidas há um pouco de tudo: samba, samba-enredo, canção, balada, rock, blues, groove. São estilos variados nos quais Mart’nália imprime o timbre e a interpretação que a caracteriza, tão ao gosto dos fãs.
O setlist traz: Sonho de um sonho (Martinho da Vila, Rodolpho da Vila e Tião Graúna), Suburbano blues (Moacyr Luz e Raimundo Fagner), Sou assim até mudar (Tom Karabachian), 17 de Janeiro (Mart’nália, Teresa Cristina e Mosquito), Morena e Chamego bom (Zé Ricardo), além da citada Novo normal. A elas se juntam três versões de Nelson Motta: Tocando a vida (Rock bottom/ Antonio Reid e Daryl Simnons), Veneno (Veleno/ Alfredo Polacci), com a participação do cantor pernambucano Johnny Hooker, e Bom demais (Feel like makin’ love/ Gene McDaniels), com sussurros da atriz Adriana Esteves semelhantes a Barry white.
Sou assim até mudar
Álbum da cantora Mart’nália com 10 faixas.
Lançamento da Biscoito Fino nas plataformas digitais.
» Entrevista / Mart’nália
Como tem sido, para uma pessoa que gosta de estar sempre cercada de amigos, conviver com o isolamento, determinado pela pandemia?
Está sendo muito difícil. Sempre gostei de estar junta com o pessoal da família, de encontrar os amigos no bar para tomar uma cervejinha e compartilhar afeto pessoalmente. Tive que me reinventar, mudar hábitos, inclusive na alimentação. Estou mais natureba. Sinto falta também dos shows, tanto dos meus quanto de artistas por quem tenho admiração. Além disso houve a perda de pessoas próximas, inclusive da Vila (Isabel). Com o uso da máscara, escondo o sorriso. Mas as coisas estão tão tristes, que fica difícil sorrir.
Estas mudanças refletiram no processo de gravação do álbum?
Também. Agora tem todo um protocolo para se gravar um disco, por conta da pandemia, evitando a proximidade entre as pessoas. No estúdio, tive que trocar a cerveja por café. E por aí vai...
Consegue ficar sem beber uma cervejinha?
Estou tentando. Não beber cerveja é igual a não poder encontrar os amigos na noite, nos bares que a gente costuma ir. Mas. beber cerveja sozinha, sem os amigos, não vale a pena. Tenho bebido cerveja sem álcool, até porque só gosto de cerveja e água para beber.
Do que mais sentiu falta?
Senti muita falta do meu querido amigo Arthur Maia, produtor de boa parte dos meus discos, inclusive o anterior, Onde anda você, em que canto canções de Vinicius de Moraes, que perdi há três anos. Foi difícil voltar ao estúdio sem ele, que me ajudava a pensar o disco, a definir o que eu iria gravar, a sonoridade, essas coisas.
Como foi trabalhar com o Zé Ricardo, que produziu o Sou assim até mudar?
Já havia trabalhado com o Zé Ricardo, inclusive no Rock in Rio aqui no Rio, que me apresentei com meu pai; e em Lisboa, ao lado de Toni Garrido, Sérgio Loroza, entre outros. Ele tem uma pegada próxima à minha e tem a coisa do groove.
Músicas que cantam ou falam do Rio de Janeiro sempre fizeram parte do seu repertório. Você chegou inclusive a gravar um disco, produzido por Maria Bethânia, que recebeu o título de Menino do Rio (nome de uma música de Caetano Veloso). O Rio estaria representado nesse novo trabalho por Suburbano Blues, de Moacyr Luz e Raimundo Fagner?
Sou carioca da Zona Norte, sempre vou reverenciar o Rio, tão maltratado atualmente. Suburbano Blues me foi enviada, numa madrugada, pela internet, por Moacyr Luz, um sambista que reúne várias tribos no Samba do Trabalhador. Gostei de cara, até porque a música falava do subúrbio, que conheço bem. Na adolescência, eu ia nos bailes de charme que aconteciam em Pilares. Meu pai queria que eu fosse com ele ao Cacique de Ramos, mas não me impedia de ir a Pilares. Sobre Suburbano Blues vi depois que, curiosamente, era uma parceria do Moa com o Fagner, artistas que têm posições políticas divergentes, embora o Fagner tenha dito que deixou de ser bolsonarista. Mas música é música e, se é boa, eu gravo.
Como outras músicas chegaram a você?
De diferentes maneiras. Tem as versões do Nelsinho Motta para standards de música americana. O Zé Ricardo propôs Morena e Chamego bom e num encontro na casa da Marcinha Alvarez, o Tom Karabachian me mostrou Sou assim até mudar, que acabou sendo título do disco. Novo normal, de Serginho Meriti e Xande de Pilares, fala do momento que vivemos. A escolha de Sonho de um sonho foi quase óbvia. Além de ser de um samba antológico da minha querida Vila Isabel, foi composta por Martinho da Vila em parceria com Rodolpho da Vila e Tião Graúna.
Esse disco está sendo lançado nas plataformas digitais. O que acha desse formato?
Agora tem single, EP, plataforma digital. Prefiro o disco físico. Não gosto desse negócio de música de trabalho, gosto de música bonita e boa de Chico Buarque, Caetaeno Veloso, Paulinho da Viola, Geraldinho Azevedo e do meu pai, Martinho de Vila. Mas, de qualquer forma, acho importante que, neste momento de tantas dificuldades e incertezas, minha música chegue às pessoas, para levar um pouco de alegria.