O artista plástico Carlos Bracher celebra a passagem dos 80 anos de vida, completados em 19 de dezembro, da forma mais generosamente mineira, com a abertura das portas físicas do Atelier Casa Bracher, em Ouro Preto, e das janelas virtuais do site Atelier Casa Bracher, organizado pelas filhas Blima e Larissa. Em ambos, o visitante encontrará um vasto acervo de obras do artista e de sua mulher, Fani Bracher, com informações sobre as obras, livros e vídeos. Carlos e Fani construíram uma parceria de 52 anos no amor e na arte.
Carlos Bracher é um dos mais importantes artistas plásticos brasileiros vivos e tem mais horas de pintura do que beija-flor de voo. Transfigurou paisagens, siderúrgicas, igrejas, personagens, corpo e alma de Minas Gerais, com sua pintura dramática, convulsiva e vibrante: “Encontrei-me com Minas Gerais através da pintura de Carlos Bracher. É o maior elogio que, de coração, lhe posso fazer. Viva Minas!”, escreveu o poeta Carlos Drummond de Andrade, depois de ver uma exposição de Bracher.
Em 2007, Bracher pintou 65 quadros sobre Brasília em frente aos monumentos ou no meio das praças da cidade. A passagem brasiliense de Bracher pela cidade foi registrada no documentário Âncora aos céus, dirigido por Blima Bracher, filha do pintor. E, nesta entrevista ao Correio, Carlos Bracher fala sobre mineiridade, pintura, séries e Brasília.
Como é a ideia de comemorar os 80 anos de vida com a abertura da Casa Bracher?
Olha, estamos conversando no pós-carnaval de 2021. Nasci em Juiz de Fora, mas, no exato carnaval de 1971, eu estava chegando da Europa para morar em Ouro Preto. Tinha ganhado o maior prêmio de artes plásticas do país, o Prêmio Salão Nacional de Belas Artes de Viagem a Europa. Portinari, Pancetti, Iberê Camargo, Rubens Gerschman e Athos Bulcão ganharam o mesmo prêmio. Comemorei o aniversário de 80 anos em 19 de dezembro. Resolvemos transformar a nossa casa no Atelier Casa Bracher, com obras minhas e da minha mulher, Fani Bracher, que tem um caminho maravilhoso, totalmente distinto do meu.
E a Casa Bracher virtual, como funcionará?
Estamos organizando também um site com um tour virtual, bancado pelo Sesi e a Confederação Nacional da Indústria (CNI). Você pode viajar pelas salas, com informação sobre cada quadro. Além disso, estarão disponíveis os 11 livros e mais de 30 filmes sobre a minha obra. Foi muito bem organizado. Assim que passar a pandemia, vamos levar às escolas. É importante trabalhar com as crianças e os adolescentes, melhorar os padrões culturais e humanos.
O seu último trabalho foi a ilustração do livro Canto mineral, de Carlos Drummond de Andrade. Qual é o claro enigma de Minas Gerais?
Somos minerais e abissais. Nós, os mineiros, e os nordestinos, somos povos profundos. É onde dá caldo. Os povos leves não dão poesia nem sumo. Porque no fundo da vida está a poesia no sentido amplo. O poético é a substância da vida, das artes e das ciências. Minas forja Carlos Drummond, homem de minérios e mistérios. Quis fazer desenhos a carvão como se fosse a própria matéria do verbo.
Qual a conexão espiritual que você tem com Van Gogh, a quem dedicou uma série de mais de 100 quadros?
É uma ligação de estilo e de alma, muito complexa, de ser e de pintar. Encanta-me muito a vida dele, a devoção à arte, a vibração da cor, o caos e a tragicidade. E, também, a forma de pintar, a densidade, a emoção da arte. Sou um sujeito caótico, não sou mental, pinto de uma maneira visceral. Tento resolver a minha saída no caos de uma tragicidade indômita. É uma complexidade anímica. Vou morrer expressionista. É um estado de alma, não se aprende. A série sobre Van Gogh rodou pela Europa, China e Japão.
Qual a motivação para pintar Brasília?
Primeiramente, porque eu sou fã de Juscelino, minha família é de Diamantina, minha avó morava em frente a casa da mãe dele. Desde os tempos de criança, eu ouvia falar do Nonô, apelido de Juscelino na família. Diziam que era muito inteligente, que acordava cedo, desde os 6 anos, para ler. Quando visitei Brasília em 1962, fiquei fascinado, queria pintar. Mas só em 2007 vim a Brasília e permaneci um ano pintando. Foi uma experiência linda. Fiz 63 quadros, pintei na rua, em contato com os brasilienses.
Por qual brecha ou janela tentou entrar em Brasília para pintar mais de 60 quadros sobre a cidade?
Peguei a beleza do céu e essa contundência do caos e da vibração telúrica. Pintei mais o céu do que a cidade. É uma cidade toda reta. A minha filha Blima fez um filme sobre as pinturas da Série Brasília, que se chama Âncoras aos céus. Moro em Ouro Preto, que tem uma arquitetura barroca. O expressionismo é meio barroco, redondo, curvo. O barroco é o mistério das coisas redondas. A Pampulha é o nicho de Brasília. É um relevo de montanhas. Embora a arquitetura de Niemeyer seja retilínea, ele tem uma alma barroca, tem um lado de curvas que está na Catedral Metropolitana de Brasília e no Congresso Nacional. Mas a curva vem atrás como algo pictórico.
Você estabelece uma relação entre o expressionismo e o barroco do Aleijadinho, tema de uma série na passagem dos 200 anos do artista?
O Aleijadinho é um fenômeno, filho de um português e de uma escrava. Naquela época, não podia ter casamento entre branco e escravo. Era um gênio nascido no fim de mundo. Aquela igreja com os profetas é patrimônio cultural da humanidade. É um primeiro artista brasileiro híbrido, filho de português com escrava. O pai do Aleijadinho adorava a negra. É um artista brasileiro com a força tropical, a consciência europeia com esse extrato vibratório espetacular. Quando me detive nessa série é que fui perceber a dimensão do Aleijadinho.
E como é a história de fazer um retrato do estilista de moda Ronaldo Fraga?
Olha, eu fiz retratos de Vinicius de Moraes, Jorge Amado, Chico Buarque, Oscar Niemeyer, Milton Nascimento, Maria Bethânia e Belchior. Tudo ao vivo. Na pandemia, fiz o retrato de Ronaldo Fraga de maneira virtual, ele posando em Belo Horizonte e eu pintando em Ouro Preto. Porque é muito importante a presença. Você sente a emoção e capta aspectos importantes do personagem. É o encontro com um grande estilista. Essa é a primeira vez que eu faço um retrato de maneira virtual.
Como vê a situação de cerceamento da arte atualmente?
É ruim, evidentemente, o corte nos investimentos para a cultura. Mas a força criativa é maior do que o cerceamento. O povo é que comanda a criação da cultura. Claro que quanto mais liberdade tivermos, maior será a arte. A cara de um povo é a cultura, é o sumo de um povo. A arte é o grito final humano. Este grito é um hino de amor à vida. Precisamos desses hinos para os outros que virão. Temos que cantar o nosso instante. Arte é a nossa raiz mais profunda, é o que a gente faz chorando, chorando de amor. A vida é ir em frente.