Quando criança, o artista plástico Moisés Patrício tinha muita dificuldade na escola. Negro, ligado ao candomblé desde pequeno, ele não se adaptava à maneira padronizada que molda o ensino do conteúdo escolar. Era tudo muito distante da ideia de cosmogonia que norteava o universo da criança. Aos 9 anos, ele foi integrar o projeto Meninos de Arte de Santo André, idealizado pelo artista argentino Juan José Balzi no final dos anos 1990. Ali, descobriu como superar a dificuldade de se expressar e de falar de seu próprio mundo por meio da arte. A semente plantada naquela época foi fundamental para a série de obras que o artista apresenta na exposição Yangí, que estará em cartaz na Karla Osório Galeria assim que acabar o lockdown, decretado no sábado pelo governador Ibaneis Rocha para conter o coronavírus. Por enquanto, o público pode acompanhar a exposição pelo Instagram da galeria e no site https://lnk.bio/GaleriaKarlaOsorio.
Paulista, 34 anos, Patrício mergulhou nas próprias origens para produzir as pinturas. “Sou candomblecista e, nesse universo do candomblé, sempre tive muita dificuldade de existir devido a toda a história da intolerância e do racismo religioso. A arte e a pintura me ajudaram a criar essa ponte, e é o que estou apresentando nessa individual. É uma série de pinturas, fotografias, objetos e esculturas que, de muitas formas, apresenta para as pessoas um patrimônio cultural imaterial, que, a partir das pinturas e fotografias, vou materializando”, explica.
Yangí é um barro fossilizado usado pelos praticantes do candomblé para cultuar determinadas divindades. “Parto um pouco dessa divindade, desse solo, para tecer um comentário sobre passado, presente e futuro”, avisa o artista. As pinturas são uma tentativa de apresentar ao público uma narrativa muito comum no universo dos povos iorubás. Oferendas, iniciações no candomblé, objetos usados nos rituais e a importância da presença corporal nessa religião são alguns dos temas tratados nas pinturas. “Parto do princípio que a alma brasileira é uma alma preta, evoco uma entidade conhecida como preto velho para falar sobre uma identidade brasileira. Começo tecendo esse comentário sobre quem habita essa alma brasileira, quem habitou no passado e quem habita no presente”, diz.
O artista encara o Brasil como uma encruzilhada cultural atravessada por diversas raízes, incluindo a africana, a europeia e a cultura dos povos das florestas. “Só que existe uma negativa, uma prática de supervalorizar uma e inviabilizar outra. A colonização ainda está ativa, essa coisa de convencer que o dominante é melhor que o dominado faz com que a gente viva hoje essa intolerância e esse racismo religioso que nos distancia dos atravessamentos”, lamenta. “E todo meu processo é de afirmação e celebração dessa cultura e dessa força africana.”
Cidade contraditória
No Museu Nacional da República, o maranhense radicado no Rio de Janeiro Marçal Athayde mostra um conjunto de 32 pinturas e esculturas reunidas sob o título de Decifra-me ou te devoro. A exposição chegou a ser inaugurada na sexta-feira, antes que o decreto de lockdown fechasse também os museus. Ela será retomada assim que as medidas restritivas forem suspensas. Para que o público possa, mesmo assim, conhecer as obras, a diretora do museu, Sara Seilert, está trabalhando em um mapeamento em 3D que permitirá visitas virtuais. “Vamos disponibilizar o link em nossas redes sociais e no site do Museu, que pretendemos colocar no ar ainda este mês”, avisa Sara. O mapeamento estará disponível no Instagram e no Facebook.
Ver essa foto no InstagramUma publicação compartilhada por MUSEU Nacional da Repu?blica (@museunacionaldarepublica)
É a partir das fachadas dos prédios da capital fluminense que o artista pinta as telas nas quais explicita as contradições da metrópole. Durante suas andanças, Athayde desenha e fotografa fachadas de prédios antigos, modernos e contemporâneos para, no ateliê, imprimir nos vidros espelhados de alguns edifícios os vestígios de um passado que tende a desaparecer.
O artista explica que é movido pelas questões cosmopolitas impostas aos habitantes dos grandes centros urbanos. “Somos meio reféns da cidade, meio que vítima. Seria utopia imaginar uma cidade plana, normal, igual. As cidades têm zilhões de facetas. A gente vai de áreas que impõem e infringem muita dor a áreas de intenso prazer e luxúria. São as cidades que a gente criou para viver”, constata. “E o trabalho traz essa preocupação, essa tentativa de trazer à tona a discussão sobre o que de fato a gente quer nas cidades. A gente quer um extremo ou outro? Haveria possibilidade de meio termo?”
Ao caminhar pelo Rio de Janeiro, por onde prefere sempre andar a pé, Athayde se deparou com o que chama de elementos da tragicidade de uma metrópole. O espelhamento da parte antiga da cidade em construções novas pode ser algo comum nos grandes centros, mas ganharam contornos poéticos e pictóricos na pintura do artista. “Essa coisa acidental dos reflexos é um fato que acontece na própria existência do ser humano, que está sempre exposto à cidade e pode ser devorado a qualquer instante pelo meio”, garante.
Decifra-me ou te devoro
De Marçal Athayde. Curadoria de Marcus de Lontra Costa e Rafael Peixoto. Visitação após o lockdown até 11 de abril, sextas, sábados e domingos, das 10h às 16h, na Galeria no térreo do Museu Nacional da República.
Yangí
De Moisés Patrício. Visitação após o lockdown até 15 de abril, de segunda a sexta, das 9h às 18h30, e sábado, das 9h às 14h, sempre mediante agendamento, na Karla Osório Galeria (SMDB Conjunto 31 Lote 1B — Lago Sul)