ARTE

Vítimas da covid-19 são homenageadas e lembradas por meio de diferentes linguagens artísticas

Por meio da arte, artistas ajudam a ressignificar e a elaborar a dor vivenciada por muitas famílias vítimas do novo coronavírus

De maneira exponencial, o novo coronavírus se espalhou pelo mundo e resumiu vidas a números. São mais de 240 mil mortos pela doença e outros 9 milhões infectados pelo vírus só no Brasil. Artistas, contudo, viram que a arte pode resgatar as histórias contidas nas estatísticas. Seja com a escrita, com as artes plásticas, com o audiovisual, a máxima é a mesma: as vítimas não são apenas números.

“Acho que meu trabalho presta uma homenagem às vítimas da covid-19, na medida em que a obra busca eternizar as pessoas que sofreram com a doença por meio das imagens. Uma radiografia de um pulmão afetado pela covid, na verdade representa mais do que o pulmão em si. Tem um ser humano por trás daquela radiografia. Representa a doença, mas também representa todas as vítimas e a família das vítimas. A arte nunca é somente a imagem que estamos vendo literalmente. É um convite para olhar, parar e pensar sobre todos os que se foram, sobre a efemeridade da nossa vida e tudo o que estamos vivendo”, afirma a artista plástica Bruna Pastorini.

Apesar de trabalhar com o abstrato e com cores, foi no preto e branco e no retrato nu e cru da doença, sem floreios, que Bruna decidiu chamar a atenção das pessoas. “Ficou totalmente diferente do que eu faço no cotidiano. É um tema tão difícil, delicado, que eu acho que não consegui transformá-lo em algo agradável ao olhar”, comenta. A artista estava lendo uma matéria sobre o vírus quando se deparou com a imagem de um pulmão de um paciente infectado. “No primeiro olhar, não parece que é uma coisa tão horrível, parecia um céu estrelado, não parecia aquele negócio tão fatal”, relembra.

Bruna Pastorini/Divulgação - Trabalho de Bruna Pastorini

Por meio da colagem digital, Bruna adicionou palavras e elementos, como desenhos de asas e de pássaros, às tomografias. “Gosto de inserir elementos que, quando você olha, já percebe o significado. As asas, por exemplo, trazem a ideia de liberdade, algo que tanto desejamos”, descreve. “A gente é tão impactado por número de mortes que aquilo vai perdendo o significado, parece que perdeu a sensibilidade. Quis isolar aquela imagem, pegar a radiografia, literalmente o retrato da doença, para que a gente não feche os olhos para algo que está ali. É transformar em arte primeiro, para chamar a atenção e ajudar a elaborar”, acrescenta.

Memorial

Em São Paulo, no final de janeiro, a prefeitura da capital paulista inaugurou um memorial em homenagem às vítimas do novo coronavírus. Uma escultura, doada pelo Ministério Público, em parceria com o Projeto Hígia Mente Saudável, foi instalada no Parque do Carmo. O monumento conta com uma cápsula do tempo, onde pessoas poderão deixar mensagens de condolências e contar as próprias experiências de enfrentamento à covid-19. De acordo com informações da prefeitura, as mensagens recebidas serão codificadas e transformadas em cápsulas, que serão depositadas na base da obra, e ficarão lacradas pelo período de 100 anos, para que se tenha uma memória da pandemia para as futuras gerações.

Conhecido pelos trabalhos multicoloridos em murais por todo o mundo, o paulista Eduardo Kobra também pintou uma das faces da pandemia. Nas redes sociais, ele divulgou o retrato da pequena Ester. A menina é filha de uma amiga do artista, de apenas 5 anos, e uma sobrevivente do vírus. “Ela e a mãe estão entre os mais de três milhões de brasileiros que contraíram a doença. Felizmente, sobreviveram e estão bem. Mas são mais de 100 mil conterrâneos nossos que não tiveram a mesma sorte — e suas famílias vivem o luto nestes tempos difíceis de pandemia. É por esses familiares que pintei a garotinha Ester em oração. E, principalmente, para que não nos tornemos indiferentes a tantas mortes”, escreveu, à época, o muralista.

Reprodução/Instagram - Trabalho Kobra. Vítimas covid-19.

Também da cidade de São Paulo, o artista Edson Pavoni criou, em colaboração com Rogério Oliveira, o projeto Inumeráveis, um memorial dedicado às vítimas do novo coronavírus. Sem poder ocupar as ruas, como fazia com as instalações, mas pensando em maneiras de se conectar com o que estava acontecendo, Pavoni ocupou o espaço que, no início da pandemia, se transformou em rua para quem estava isolado em casa: a internet. “Em uma conversa com o Rogério, ele comentou sobre o incômodo que é acordar todos os dias com um número novo de mortes. Você vai ouvindo tantas vezes que vai perdendo o significado e a gente vai se tornando insensível”, relembra. “Nessa conversa, ele trouxe a ideia de contar a história dessas pessoas. Então, fomos para a internet e passamos a procurar familiares de pessoas que faleceram vítimas do vírus”, acrescenta.

Extraordinários

As conversas se transformaram em textos, que são publicados em um site, e em pílulas publicadas nas redes sociais. “Não há quem goste de ser número. Gente merece existir em prosa”, define o projeto. “Meu objetivo era conseguir extrair o que fazia dessas pessoas únicas. O que tem para celebrar nessas vidas que se foram. Além do luto e da tristeza, que são naturais desse momento, nascia um sentimento de celebração da vida. Depois da primeira conversa, entendi que eu fui um pouco curado, que o familiar também foi um pouco curado e que se a gente criasse um movimento de pessoas entrevistando pessoas, escrevendo e contando essas histórias estaria criando uma onda de cura e compreensão da profundidade do momento histórico que estamos vivendo. O Inumeráveis é um projeto artístico, poético e jornalístico. E o poder da arte, neste momento, é o poder da cura”, conclui Pavoni.

No podcast Muitas vidas, disponível no aplicativo de conteúdos em áudio Orelo, Chico Felitti também evidencia o extraordinário de cada uma dessas vidas que se perderam. “Essas pessoas são mais de 1.200 famílias, histórias incríveis, amores de alguém”, descreve. Os episódios contam quem são essas vítimas com a ajuda de parentes, amigos e registros de áudio feitos durante a vida.

 
 
 
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As conversas comoventes e emocionadas resgatam, no dia a dia, no cotidiano, as memórias que fazem de cada ser único e especial. “O extraordinário está lá, é uma questão de extrair”, detalha. Nos 12 episódios disponíveis, o jornalista apresenta um retrato diverso de sotaques, de idades e de gêneros. “Mas, a memória que cada vítima deixou era o que as unia. O amor que elas deixaram era o que tinham em comum”.

Entrevista // Chico Felitti

Como e quando surgiu a ideia do ‘Muitas vidas’?
Me peguei, no começo da quarentena, com uma frustração muito grande porque não podia estar na linha de frente, fazendo reportagem, documentando tudo, porque tenho um problema no coração. E a reportagem é muito essencial nesse momento para mostrar para o mundo o que estava acontecendo. Isso me pesou muito, até que um amigo perdeu o pai para a covid. Isso logo no começo da pandemia, quando os números de mortos eram muito menores do que hoje em dia, naquele estágio que não sabia se as mortes eram ou não de covid, e tínhamos pouca informação oficial. Fui conversar com ele, conversamos muito tempo e isso rendeu um texto que não usei em lugar nenhum. Era a história do pai dele contada por ele. Ali, vi que podia procurar pessoas do Brasil inteiro, de perfis diferentes e fazer um exercício de escuta até para elas poderem extravasar e dar vazão ao que estavam sentindo. Então, fui fazendo meio sem plano. Comecei a publicar esses textos em um site chamado Muitas vidas. Eram conversas tão ricas e cheias de significado e emoção. Em conversa com o pessoal da Orelo, apresentei a ideia para eles. Achei que o áudio fosse dar a essas histórias um tom que elas não teriam no texto.

Por que você acha que o áudio tem esse poder?
Sou muito apaixonada por áudio. Acho uma mídia mágica, porque ela personaliza. Não vou esquecer nunca de uma momento no qual a entrevista, amiga da Miss Biá, uma das drags queen pioneiras no Brasil, para de falar e pede desculpa, porque precisa fumar e diz que se ela não fumar não vai conseguir falar. Ali é a presença da pessoa. No episódio da Miss Biá tem também um áudio da Hebe, quando ela foi no programa dela. Dá uma dimensão para a vida da pessoa, dá um corpo, uma presença que o texto mesmo não teria.

Você planeja transformar as histórias que escutou em algo além do podcast? Tem outros planos?
Ainda tem muita coisa para fazer. Estamos vivendo um momento histórico e não temos plena consciência disso. É algo equivalente a uma guerra mundial, mas é uma guerra mundial homeopática. Continuo fazendo essas entrevistas sem saber o que vai ser. A memória é algo que se esvai, ainda mais em um momento desse, que está acontecendo um morticínio, estamos perdendo muitas histórias de vidas extraordinárias.

O que você aprendeu com a experiência?
A lidar com a dor das pessoas que perderam alguém. A gente tende a se afastar por medo e, às vezes, é só se aproximar e ouvir o outro. A pessoa só quer contar para alguém o quanto gostava daquela pessoa que se foi. Você sente que está mexendo com a coisa mais importante que as pessoas têm.

Qual o papel da arte ao resgatar essas histórias?
A arte serve para a gente dar sentido ao mundo. Estamos vivendo um tempo muito sem sentido. Ao traçar um mapa do que está acontecendo, a importância simbólica disso é gigantesca. A arte pode fazer muito, apesar de parecer que não pode fazer nada.