Em quase um ano, máscaras, álcool em gel, redes sociais, distanciamento e isolamento social, aplicativos de vídeo, ausência e todos os sentimentos envolvidos no contexto da pandemia do novo coronavírus passaram a integrar o cotidiano do ser humano. Mas também foram transformados em linguagens artísticas. Afinal, contextos epidêmicos e de calamidade pública pautaram e influenciaram a cultura e as artes plásticas também em outros momentos da história.
“Talvez como uma forma de pontuar o seu tempo, mas também de deixar um legado para a posteridade, muitos artistas visuais, e de outras áreas, produziram projetos e materiais pensando essas circunstâncias”, conta a curadora e professora da Universidade de Brasília (UnB) Cinara Barbosa. Logo no início da pandemia, Cinara se envolveu em dois projetos de extensão dentro da UnB, que provocaram e deram visibilidade para a produção em tempos de pandemia. “Acho que uma das coisas que acabou me estimulando, além da demanda da própria universidade, foi localizar naquele momento o que era uma certa discussão sobre a importância da arte, no que seria uma espécie de fôlego dentro das circunstâncias de confinamento”, detalha.
A curadora encontrou experiências diversas, de trabalhos que foram feitos a partir dos materiais que entraram em circulação, como máscaras, frases de efeito e palavras de ordem. “As dinâmicas ocorreram de uma forma muito plural. A pandemia também estimulou uma série de necessidades, de organização por parte do artista. Acho que esses trabalhos que retratam o que estamos vivendo, podem ainda estar atrelados às produções estimuladas em editais de emergência, que colocaram o tema de uma maneira muito forte e preponderante”, avalia.
Se, em um primeiro momento, a experiência era de completo confinamento, agora, existe um trânsito, mesmo que com muito resguardo. “Já vejo uma tentativa de como a gente vai lidar com esses protocolos. A dinâmica das redes sociais, por exemplo, trouxe muita experiência e muita coisa será mantida, mas a gente vai vir com muita necessidade de encontro”, descreve Cinara. “Vamos recriar ou já estamos recriando esses modos de encontro”.
Para exemplificar como a pandemia do novo coronavírus pautou e influenciou a produção artística, de diversas maneiras e linguagens, o Diversão & Arte separou alguns exemplos.
A cidade se perde nas ausências
A série A cidade se perde nas ausências nasceu de uma vontade do fotógrafo Márcio Borsoi de descobrir como estava a cidade à noite, logo no começo do confinamento. “Comecei a sair regularmente para fotografar. Fotografava de dentro do carro com o vidro fechado e foi me dando uma angústia muito grande de ver a cidade parada, os vultos na rua, muito espaço”, relembra.
As primeiras imagens foram clicadas na própria quadra onde o fotógrafo mora e, nas palavras do artista, lembram os quadros do pintor Edward Hopper. “A solidão, o vazio. A cidade não pulsava”, descreve. Para Borsoi, Brasília virou uma maquete. “Eu me arrisco nas sombras, vejo pessoas sem rostos e iguais, cobertas por máscaras, só os olhos ficam visíveis parecendo não ver o perigo mortal. Tempo sombrio”, escreve o fotógrafo.
A experiência, que resultou em mais de 150 fotos, não difere da poética minimalista e intimista dos trabalhos de Borsoi, mas fez com que o fotógrafo refletisse, principalmente, sobre o tempo e decidisse documentar o que estava acontecendo. “A gente começa a perceber como o tempo é valioso, porque o tempo corria, mas o mundo estava parado”, avalia.
Vinte vinte — O ano que nunca acabou
“Não há o que romantizar o que aconteceu nesse ano que nunca chega ao fim”, escreve a publicitária e atriz Ana Paula Grande. Ela e o fotógrafo Bruno Stuckert se viram diante de um impasse na noite de 31 de dezembro de 2020. O ano, marcado pela pandemia do novo coronavírus, havia chegado ao fim, mas a sensação era de permanência em um espaço-tempo passado. Cada um com uma poética e uma sensibilidade, eles decidiram, então, registrar, em textos e imagens, a dicotomia de sentimentos aflorados em 2020 como uma espécie de retrospectiva.
O e-zine VINTE VINTE — O ano que nunca acabou, publicado pelos artistas, é uma mistura de angústias e sensações sob duas vertentes. A primeira é o microcosmo das atividades e histórias do cotidiano do casal e a segunda é um olhar mais amplo para as dores e medos vivenciados por toda humanidade. “Nossa tentativa era tentar legitimar as angústias que a gente tinha. Mesmo estando num espaço de tanto privilégio, em uma casa com conforto, mas de fato sofrendo com a solidão, com a distância da família, com o medo, com as tantas mudanças. Mas, ao mesmo tempo, vendo uma realidade muito cruel e desumana do nosso lado”, afirma Ana Paula.
Enquanto Bruno fotografava a cidade, as pessoas na rua e o dia a dia dentro de casa, Ana Paula anotava palavras soltas que traduziam os sentimentos mais diversos. “Nosso objetivo é poder, nesse momento tão difícil, abrir o coração e os olhos das pessoas para que vejam quem está ao lado, os desfavorecidos. Existe uma discrepância enorme ao nosso lado. E nisso, não existe partido político, existe o ser humano, a pessoa. A humanidade está precisando de um choque de realidade”, pontua Stuckert. “Também é uma forma de tentarmos resgatar um pouco do que ouvimos no começo, que a pandemia era uma oportunidade de evoluir, de ser empático. As pessoas foram perdendo isso e transformando num processo extremamente egoísta e banal”, acrescenta Ana Paula.
40Antenasdc (depois do coronavírus)
“A gente tem que se proteger disso a partir do poético, do sensível e do artístico e não nos entregar nessa pandemia”, afirma a artista visual Suyan de Mattos. Ao lado de outros artistas, curadores e pesquisadores, Suyan desenvolveu o projeto 40Antenas. Um olhar sobre o hoje, mas com foco em uma ocupação da passarela subterrânea da 109 Sul em 2022. “Convidei artistas de Brasília e propus a eles essa ocupação pós-pandemia, mas, antes disso acontecer, eles tinham que me mandar pelo menos uma vez por semana a produção particular”, detalha Suyan. No meio do caminho, a artista conta que alguns convidados produziram muito durante o período de confinamento, enquanto outros encontraram dificuldades. “Porque todo mundo ficou com medo, sem saber o que estava vindo”, justifica.
A partir das produções enviadas, o 40Antenasdc ganhou uma página nas redes sociais, na qual os trabalhos tiveram visibilidade e um segundo grupo se uniu ao primeiro: as parabólicas. “Queria que o projeto estivesse vivo, então convidei mais 55 artistas que são as parabólicas. Ao todo, somos 100 artistas que fizemos 100 lives no decorrer do ano e, este ano, entramos na terceira fase que é a produção do catálogo digital”, detalha Suyan. Para 2022, além da ocupação, está nos planos a impressão do catálogo e o lançamento do produto na DeCurators, na Asa Norte.
Com acompanhamento crítico de Marília Panitz, coordenação visual de Cirilo Quartim e a curadoria dos dois mais Suyan e Hilan Bensusan, o projeto tem um pouco de tudo, inclusive a temática da pandemia que perpassou os trabalhos refletida em materiais, olhares do cotidiano. “Mas, uma coisa que a Marília Panitz pediu é que não queria que nós tratássemos da pandemia, tínhamos que continuar a nossa produção particular para não ter esse foco. É muito estranho trabalhar com esse tema, porque parece que a gente está querendo vender um produto que não é nosso”, comenta Suyan.
Live DDesenho
Não foi a primeira vez que a artista Taís Koshino usou das redes sociais para se conectar com as pessoas. Contudo, a relação com a tecnologia ganhou outro sentido no período de confinamento. Uma relação aliada à prática diária do desenho. “Ao contrário do que as pessoas pensam, o desenho é, para mim, uma prática e tem que ser feito constantemente. Na minha rotina, eu tinha esse momento, porque, então, não compartilhá-lo já que estava sentindo falta de encontrar os amigos, conversar sobre criação e até desenhar juntos”, detalha Taís. Foi assim que surgiu a Live DDesenho. A artista pegou um caderno de folhas destacáveis e convidou os seguidores do Instagram para criarem em conjunto e conversarem. “Durante uma das lives, alguém sugeriu que eu convidasse outras pessoas”, acrescenta.
Então, vieram as edições especiais com artistas de Brasília, São Paulo, Rio de Janeiro e Curitiba. “Foi uma experiência muito interessante, desenhar a partir de sugestões de outras pessoas, estar aberta ao improviso, e com outros artistas a partir de um mesmo tempo e ver como surgem imagens tão diferentes. É uma potencialidade muito grande nessa troca com o público”, comenta Taís.