"Tem um velho ditado iorubá que diz: 'Exu matou um pássaro ontem com uma pedra que só jogou hoje'. Esse ditado é a melhor forma de resumir o que eu tento fazer. Eu não sinto que eu vim, eu sinto que eu voltei. E que, de alguma forma, meus sonhos e minhas lutas começaram muito tempo antes da minha chegada."
Assim o rapper Emicida, como é mais conhecido o paulistano Leandro Roque de Oliveira, abre o documentário AmarElo.
Lançado em dezembro de 2020 na plataforma de streaming Netflix, o longa metragem celebra o legado da cultura negra brasileira, em meio aos bastidores do show de lançamento do álbum de mesmo nome do cantor, no Theatro Municipal de São Paulo.
No filme, Emicida resgata a memória de ícones da história afro-brasileira, como o arquiteto escravizado Tebas da São Paulo do século 18; a Frente Negra Brasileira, primeira organização de ativismo negro do país, ainda na década de 1930; o Teatro Experimental do Negro, criado por Abdias Nascimento em 1944; a feminista negra Lélia Gonzalez (1935-1994); e o Movimento Negro Unificado (MNU) surgido em 1978, em meio à ditadura militar.
Com isso, o rapper busca mostrar que a jornada de luta dos negros brasileiros não começou agora. Trata-se de um movimento coletivo, com continuidades entre gerações.
Hoje, o griô é eletrônico
AmarElo não foi o primeiro e não será o último documentário a resgatar a jornada de sobrevivência, luta e vitórias dos negros brasileiros. Antes dele, outros trabalhos guardaram essa história em película e videotape.
"A história do movimento negro não passa pelos bancos escolares, passa pela tradição da contação de história", diz Filó Filho, um dos fundadores do acervo digital de cultura negra Cultne. "Hoje, o griô é eletrônico. O audiovisual é uma forma de fala, passando de geração em geração as nossas histórias."
Griô, na África Ocidental, é o indivíduo que tem por vocação preservar e transmitir as histórias, conhecimentos, canções e mitos do seu povo.
"Há um problema com a história recente. Ela já é suficientemente velha para estar fora do discurso jornalístico corrente mas, ao mesmo tempo, é nova demais para ter historiografia", diz o jornalista Gabriel Priolli. "Então a história recente fica num certo limbo e esse é o papel da recirculação desses materiais: permitir que os jovens tenham a noção histórica, o sentido de continuidade e progressão das coisas."
Confira a seguir três documentários que, antes de AmarElo, trataram da trajetória dos negros e negras no Brasil.
1. O Negro da Senzala ao Soul (1977)
"Um quadro do pensamento negro no Brasil de hoje. É isso que estará em seu vídeo a partir de agora."
As palavras são de um âncora de televisão negro, que aparece sem ser identificado durante os primeiros minutos do documentário de Emicida.
Esse jornalista é Paulo Roberto Leandro, falecido em 2015. E a cena é parte de um outro documentário: O Negro da Senzala ao Soul, lançado em 1977, por Gabriel Priolli, então repórter da TV Cultura, em seu primeiro emprego como jornalista, aos 24 anos.
Priolli conta que o filme surgiu de uma reportagem comum da TV Cultura, quando ele foi enviado para cobrir a "Quinzena do Negro" na USP, evento acadêmico organizado pelo sociólogo Eduardo de Oliveira e Oliveira (1924-1980).
À época, na Cultura, o chefe de reportagem era o jornalista negro Roberto Camargo, e Paulo Roberto Leandro, também preto, era diretor do departamento de jornalismo.
"1977 era um momento que o movimento estudantil estava eclodindo, com as primeiras passeatas depois de 1968 [ano de endurecimento da ditadura militar, quando foi decretado o Ato Institucional Nº 5] saindo da USP naquele ano", lembra Priolli.
"Era o momento de rearticulação da sociedade civil depois da morte do Vlado [Vladimir Herzog, diretor de jornalismo da TV Cultura e professor da USP, morto pela ditadura em 1975], com uma rearticulação geral do movimento sindical, dos movimentos de carestia, de trabalhadores rurais, estudantes, negros, mulheres, gays e os partidos também começavam a discutir a questão da recuperação partidária", recorda o jornalista.
"Nesse caldo de cultura, surge a Quinzena do Negro. Era para ser um debate acadêmico, mas quando cheguei ali, vi que era muito mais que isso. Era um embrião do ressurgimento e da rearticulação do movimento negro", diz Priolli, lembrando que já estavam ali presentes diversos dos militantes negros que fundariam no ano seguinte o MNU.
"Isso aconteceu num momento em que a soul music bombava no Brasil", conta o jornalista.
"Ela juntava milhares de jovens nos bailes. O que hoje é o funk na época era o soul, que juntava a molecada negra nas periferias de São Paulo e Rio, sobretudo. E era, evidentemente, muito mais do que ouvir música, tinha um sentido cultural e político de black pride [orgulho negro] e de identidade que era uma coisa visível."
Priolli conta que o ineditismo do documentário foi tratar de um assunto que, na época, era tabu e não tinha espaço no debate público.
"Ainda vivíamos sob uma censura terrível, ela só cairia no final do ano seguinte. Todo mundo achou que o documentário seria censurado, mas ele passou", lembra o jornalista.
"Foi uma ousadia muito grande, pois o Brasil era oficialmente uma 'democracia racial' e ponto. Não existia questão do negro. Simplesmente afirmar que existia, que o racismo era um problema estrutural, que precisava ser enfrentado e faria parte central da luta democrática tinha uma dimensão subversiva muito grande."
Priolli conta, com orgulho, que o documentário foi abraçado pelo movimento negro desde sua produção até o lançamento. "Desde que foi ao ar, ele passou a ser um material de estudo do movimento negro e de 'agitprop' [termo usado pela esquerda durante a ditadura para ações de agitação e propaganda política]. Cópias do programa rodavam nas mãos dos militantes para fazer trabalho de base, então ele teve um papel político importante."
Para ele, foi uma emoção rever trechos do seu trabalho no documentário de Emicida. "Me senti recompensado, vivo. Considero talvez o trabalho mais importante da minha vida e ver que ele continua ressoando na juventude 43 anos depois dá muito orgulho e satisfação."
O documentário O Negro da Senzala ao Soul
2. Ôrí (1989)
"No Brasil, você pode encontrar nos terreiros, nas escolas de samba, nos grupos de maracatu, nos ranchos, nos blocos de frevo, os reinos africanos recriados", diz o militante do movimento negro Ciro Nascimento, durante um desfile da Vai-Vai em 1980, registrado pelo documentário Ôrí, lançado pela socióloga e cineasta Raquel Gerber em 1989.
Ôrí em iorubá significa "cabeça", mas também "consciência".
Partindo da vida e do pensamento da historiadora e militante negra Beatriz Nascimento (1942-1995), o filme documenta os movimentos negros brasileiros entre 1977 e 1988, discute a relação entre Brasil e África e o conceito de quilombo.
Gerber conta que, nos anos 1970, trabalhou como voluntária na Cinemateca Brasileira, onde ajudou na restauração dos negativos do filme Deus e o Diabo na Terra do Sol, após um roubo na instituição de preservação do audiovisual brasileiro, que à época estava instalada em galpões no Parque do Ibirapuera.
"Foi uma escola de cinema para mim. Glauber tinha uma relação muito forte com a cultura da Bahia, então passei a me interessar pelas culturas formadoras do Brasil, ele me abriu muitas portas de reflexão sobre as origens da nossa formação cultural", conta Gerber.
Ela realizou algumas de suas primeiras filmagens no terreiro Ilê Xoroquê, em São Paulo, que era frequentado à época pela militância negra. Também esteve presente na Semana do Negro na USP, em 1977. E em 1978 teve a oportunidade de viajar pela primeira vez à África — que passava pelos processos de luta pela independência nacional dos países, após a colonização —, além de acompanhar a formação do Movimento Negro Unificado também naquele ano.
"Havia toda uma conjunção de fatores que impulsionava a realização de um trabalho nessa área", diz a cineasta.
"E eu conheci nessa época, em 1977, a Beatriz Nascimento, por quem senti uma grande afinidade no campo das ideias", recorda Gerber.
"Ela estava produzindo uma historiografia que queria se contrapor à historiografia oficial, que mostrava o negro brasileiro só como escravo. Então ela se propunha a fazer uma nova historiografia dos quilombos no Brasil, mostrando o quilombo como recriação de uma formação societária, mas também como uma forma de organização e resistência dos negros ao colonialismo. Uma forma que vem da África para as Américas e se perpetua até hoje."
O documentário levou 11 anos para ser concluído, tendo parte do seu material apreendido pela ditadura ainda em 1977. A diretora conta que enfrentou na produção do filme a ausência de imagens sobre a história negra, com muito da memória da escravidão tendo sido destruída após a abolição. Além disso, na época de sua estreia, o filme foi passado em poucas salas, devido à dificuldade de se exibir documentários de longa metragem nos cinemas.
"Demorou quase 50 anos para o filme ser visto no Brasil. Ele foi exibido internacionalmente e ganhou muitos prêmios importantes, mas demorou muito para ser conhecido aqui. Só há um ano ele está disponível em plataforma digital e agora há muita demanda, porque ele atende aos professores na área de ensino de história."
O documentário Ôrí pode ser visto na íntegra na plataforma Tamanduá.
3. Frente Negra Brasileira (1985)
"Só o outro me interessa. Afinal, é no encontro que nossa existência faz sentido", diz Emicida em AmarElo, citando o Manifesto Antropofágico do modernista Oswald de Andrade.
O documentário Frente Negra Brasileira, de pouco mais de 17 minutos e editado por Ras Adauto e Zózimo Bulbul, registra um grande encontro da história negra brasileira.
Em 1985, na sede campestre do Clube Aristocrata — histórico clube para negros criado na década de 1960 em São Paulo, em resposta à discriminação sofrida pela elite negra por parte da high society paulistana —, militantes do MNU se encontraram com remanescentes da Frente Negra Brasileira.
"Vocês querem saber a diferença entre a nossa época e a sua época?", pergunta Henrique Cunha, um dos fundadores da Frente Negra Brasileira, durante o encontro.
"É que, na nossa época, nós sentíamos o preconceito aberto. Nós passávamos no barbeiro, ele dizia: 'Não, aqui não cortamos cabelo de preto'. Preto entrava no restaurante, ouvia: 'Escuta, vocês vão comer lá na baixada, porque aqui o patrão não quer preto'. Era assim aberto."
Filó Filho, um dos criadores do acervo Cultne, junto a Carlos Medeiros, Ras Adauto e Vik Birkbeck, conta que o encontro surgiu de uma discussão dentro do movimento negro sobre a questão da memória.
"Ali foi um momento histórico entre gerações do movimento negro, jovens ouvindo os mais velhos, e eles falando ali enquanto sujeitos daquele momento da década de 1930", diz Filó Filho, cujo nome de batismo é Asfilófio de Oliveira Filho.
"A importância da memória é essa. Futuras gerações, os próximos doutores que nós vamos ter, terão referências com base nisso que nós plantamos. Estamos entregando o bastão para essa geração que está aí", diz o videomaker e produtor.
"Graças a Deus, mais da metade dos estudantes universitários hoje são negros. Mas graças a quê? Ao movimento negro. Ele que pavimentou essa estrada para essa garotada hoje estar aí agora. Quero deixar esse mundo com a convicção de que eles não vão deixar de resgatar o passado."
O documentário Frente Negra Brasileira
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