Em uma era tão conectada, sobretudo com a pandemia, desacelerar durante os afazeres parece um luxo difícil de ser conquistado. Um estilo musical, no entanto, chegou com a proposta de relaxar os seus ouvintes enquanto realizam as mais diversas atividades, mas, é claro, sem tirar a sua concentração. O Lo-Fi Hip Hop é caracterizado pelas batidas suaves e pela simplicidade técnica, geralmente sem partes vocais, resultando em músicas leves e aconchegantes aos ouvidos. Um abraço sonoro.
O termo vem da expressão em inglês “low fidelity” (baixa fidelidade), referindo-se à qualidade e à complexidade do som. Geralmente, os artistas desse gênero não possuem orçamento para grandes produções e acabam limitando-se a equipamentos próprios em estúdios improvisados, quase sempre nas suas próprias casas. Ao contrário do que possa parecer, porém, essa peculiaridade não torna as músicas ruins ou simplórias.
Aqueles que produzem lo-fi buscam elementos não tão usuais para compor as músicas, deixando-as ainda mais interessantes. Barulhos de chuva, chiados de fita cassete, trechos de diálogos de filmes, instrumentos de brinquedo e simuladores de agulha de toca-discos são alguns exemplos de sons que podem ser integrados às músicas — autorais ou remixes de obras já existentes.
As sonoridades pouco agressivas do Lo-fi Hip Hop, ao contrário do Hip Hop tradicional, fazem com que o estilo seja muito apreciado para manter o foco durante o home office, para estudar, ler, ou mesmo para relaxar a qualquer hora do dia. O público que consome esse tipo de música está concentrado principalmente entre os mais jovens, dos 15 aos 25 anos. Curiosamente, é este mesmo grupo que também produz diversas composições de lo-fi, que podem ser encontradas em playlists e rádios on-line mundo afora.
Nostalgia
O analista de sistemas João Dutra, 26, foi um dos que mergulharam no mundo da produção musical e acabaram encontrando no gênero um lugar de expressão. “Eu comecei a produzir lo-fi no começo de 2019. Um dos motivos era que eu tinha muito interesse em começar como músico amador. O Lo-Fi Hip Hop é algo muito fácil de se fazer a nível técnico. Então, pela baixa barreira de entrada, foi assim que iniciei”, conta.
O canal de João no YouTube (jdutra), que começou com mil inscritos, conta hoje com cerca de 67 mil ouvintes e 15 milhões de visualizações no total. Em 2020, ele viu suas produções viralizarem de forma considerável, principalmente com a chegada do período de isolamento social, imposto pela pandemia de covid-19.
“Nesse ano difícil que a gente passou, as pessoas acabaram buscando coisas que já conheciam para se sentirem mais confortáveis com o mundo do jeito que está. A nostalgia se torna, então, um fator importante no lo-fi, pelo menos pra mim enquanto produtor. Eu sempre tento encaixar nas minhas músicas sons de fita cassete ou fita VHS — que são elementos dos anos 90 —, barulhos de natureza no fundo, barulhos de chuva... A intenção é justamente inserir a sensação de nostalgia no som, para que as pessoas gostem mais e se sintam melhores ouvindo”, explica o artista.
Entre as produções, podemos encontrar principalmente remixes com músicas de artistas brasileiros, que são a maior fonte de inspiração de João Dutra. A versão lo-fi da música Amiga da minha mulher, de Seu Jorge, por exemplo, tem mais de 2 milhões de visualizações. Além disso, existem outros remixes para todos os gostos, desde pagode, com Zeca Pagodinho, a sertanejo, com Rick e Renner. Algumas versões inusitadas também entram na lista, como o lo-fi usando a música de abertura do seriado Chaves. De início, a combinação parece estranha, mas só escutando para entender o quão criativo o mundo do Lo-Fi Hip Hop pode ser.
Improviso
Depois de ter os planos de gravar suas músicas em um estúdio frustrados por causa da pandemia, o brasiliense Pedro Poty, 22, precisou se reinventar. Inspirado pelo trabalho de outros ‘lo-fiers’, como João Dutra, o estudante de comunicação decidiu fazer o que ama com o equipamento que tinha a seu alcance: um celular. Usando melodias que ele mesmo já havia gravado e algumas batidas características do gênero, Pedro gravou um álbum de Lo-Fi Hip Hop inspirado no dia a dia, o Text me Pictures of your dog.zip, já disponível na plataforma de músicas Spotify.
“A ideia surgiu no começo do ano passado, ainda sem muito desenvolvimento, eu só queria gravar minhas músicas. Cheguei a procurar estúdios e fazer orçamentos, mas aí chegou a pandemia e eu deixei meio de lado por um tempo, porque achava que gravar sem estúdio seria impossível. Depois de começar a ouvir mais lo-fi, eu fui percebendo que aquele tipo de música talvez eu conseguisse. Então, comecei a estudar mais sobre produção musical e como eu poderia fazer isso de casa”, relata o artista.
“Foi tudo feito no celular, desde as músicas até as artes de divulgação e a capa, porque era tudo que eu tinha à disposição. Gravar e mixar os vocais e o violão foi um desafio a parte, já era difícil conseguir o silêncio apropriado para gravar em casa, e na hora de editar tinha muita ‘sujeira’ pra retirar dos sons, já que o microfone do celular deixa tudo com cara de áudio de WhatsApp”, conta.
A música pictures of your dog, única do álbum que possui letra e trecho vocal, fala sobre se agarrar a coisas simples da rotina para não enlouquecer com o caos que está o mundo, como uma videochamada com os amigos, um hobby, ou receber de algum contato uma foto fofa do bichinho de estimação — como sugere o título. Talvez esse 'conforto' seja a explicação para o sucesso do Lo-fi Hip Hop neste período.