Além de pai e filho, Moraes Moreira e Davi Moraes eram grandes amigos e companheiros de estrada. Em praticamente todos os shows que apresentou ao longo da carreira solo, o cantor, compositor e violonista baiano Moraes teve o bandolinista, guitarrista e herdeiro musical Davi ao seu lado no palco — desde a simbólica edição do Rock in Rio, em 1985.
A morte do fundador dos Novos Baianos, em 13 de abril do ano passado, de causas naturais, abalou o filho. Para encarar a dor, resolveu gravar Todos nós, um EP com quatro músicas, que acaba de lançar pela Biscoito Fino. Das músicas, três são inéditas, Aos santos, Aquele abraço do Gil, O cantor das multidões, às quais se junta a regravação de Daviliença, antiga parceria de Moraes Moreira e Armandinho Macedo.
Em Aquele abraço do Gil, com melodia criada por Joyce Moreno, um dos trechos da letra escrita por Moraes Moreira soa premonitório: “No meu andar de passista/ A minha alma de artista deixa o corpo e voa/ Ao exalar-se etérea sai ali mesmo/Onde a matéria ainda não povoa...”
O título do EP, sugestão de Maria Cecília, a Ciça, remete ao nome da primeira composição do irmão, composta aos 10 anos, gravada em duo com o pai no LP Bazar brasileiro, de 1980. Para Davi, a escolha teve a ver também com o fato de, durante algum tempo, toda a família estar junta nas turnês que Moraes fazia. Motivo para isso, o filho teve de sobra, pois sete meses depois da morte do pai, perdeu a mãe Marília Mattos, chamada de Marilhona, na época em que os Novos Baianos viviam comunitariamente — para diferenciar de Marilhinha, mulher de Luiz Galvão.
No disco, com produção de Kassim, há a participação de Marina Lima (voz e violão de aço), Dadi Carvalho e Alberto Continentino (baixo), Paulo Braga (bateria), Mu Carvalho (piano), Paulo Braga e Cezinha (bateria) e Carlinhos Brown (percussão). “Todos são grandes músicos e amigos, que estiveram comigo nesse projeto que realizei, movido pelo amor que tenho por meu pai”, diz Davi. Em entrevista exclusiva ao Correio, emocionado, o guitarrista, além de se ater a aspectos da criação do Todos nós, falou sobre a longa convivência com pai, que o levou a se tornar músico e torcedor do Flamengo; e adiantou que vai voltar à produção de um CD de canções inéditas, a ser lançado no primeiro semestre deste ano.
Entrevista / Davi Moraes
Já com algum distanciamento, desde a morte de Moraes Moreira, há 10 meses, consegue dimensionar a falta que ele faz para você?
É imensa, porque, além de pai, ele foi professor, parceiro, companheiro de estrada por muitos anos. Com seu olhar poético, uma voz diferenciada e um violão que encantaram a todos, deixou um riquíssimo legado para a música brasileira. São incontáveis canções que compôs, gravadas por ele e por outros consagrados artistas como Caetano Veloso, Gilberto Gil, Ney Matogrosso, Fagner, Maria Bethânia, Gal Costa, Elba Ramalho e Maria Rita.
O que destaca na convivência artística que teve com Moraes?
Ainda era criança quando passei a me apresentar com meu pai. Aos 10 anos, estava ao lado dele no show que fez na primeira edição do Rock in Rio, em 1985. Pré-adolescente, participei da longa turnê que ele e Pepeu Gomes fizeram pelo país, com passagem por Brasília. Tempos depois voltamos à capital com o show Nossa parceria, apresentado no Clube do Choro. A mim, além de Davilicença, que regravei agora no EP, dedicou Meninos do Brasil. Conversávamos quase que diariamente e sempre trocávamos ideia principalmente sobre música.
Foi por influência de seu pai que você se tornou torcedor do Flamengo?
Totalmente. Ainda criança ia com ele não só ao Maracanã, como também aos treinos na Gávea. O rubro-negro Moraes Moreira fez músicas para o Flamengo e para o Zico. Quando meu pai morreu, Zico ligou para mim, buscando me confortar.
Seu pai morreu em abril e sua mãe em novembro. Separados há algum tempo, eles mantinham boa relação?
Embora separados há alguns anos, eles tinham uma relação muito boa e se falavam por telefone diariamente, pois a amizade foi mantida; e também pela profunda ligação dos dois com os filhos. A Ciça, minha irmã, foi quem deu a mim a triste notícia da morte dele; enquanto fui eu, que falei do falecimento da nossa mãe para ela. E ainda perdemos, 15 dias depois da morte do nosso pai, a avó materna Cândida, conhecida como Tilinha, aos 97 anos. Ela era uma avó extremamente carinhosa com os netos. Quando crianças, ficávamos sob a guarda dela, durante as turnês do mestre Moraes Moreira. Uma outra coisa relevante: foi na casa dela que, quando deixou os Novos Baianos, com os bolsos vazios, ele morou. E lá ficou até dar início a carreira solo.
Como reagiu diante de tanta perda?
A profunda dor que senti me levou à busca de uma força interior que desconhecia. Com isso obtive um crescimento, um fortalecimento, que me levaram a fazer essa celebração ao meu mestre e amigo. Onde estiver, certamente ele deve ter ficado feliz com a produção e lançamento do Todos nós, no qual a dor deu lugar ao amor.
Como nasceu o Todos nós?
Numa certa manhã, a Joyce Moreno se encontrou com meu pai, de quem era fã, numa padaria no bairro da Gávea e ele passou para ela a letra de uma música intitulada Aquele abraço do Gil, escrita num papel. No outro dia, Joyce mandou um áudio de volta com um samba, que acabou não sendo gravado. Conversando comigo, ela sugeriu que eu a fizesse o registro num single. Mas, eu já tinha em mente gravar um EP, cuja primeira faixa seria Aos santos, um bolero que compus em 2019 e havia pedido a Carlinhos Brown para fazer a letra. Naquele ano, pela primeira vez, não toquei com meu pai no carnaval. Num dos versos, de forma profética, ele escreveu: “Você foi embora e me deixou aos prantos/ E apaixonado consultei os santos”.
Davilicença, que Moraes fez para você, foi gravada com Marina Lima. Por que o duo?
Este choro meu pai fez com Armandinho Macedo quando eu era criança. Na época, o Armandinho veio aqui para o Rio e ficou morando na casa da minha família. Eles tocavam quase que o dia inteiro. Como me ensinaram a pedir licença, ao passar pela sala eu dizia “Davi licença”. A música foi gravada por meu pai no LP Bazar brasileiro, de 1980. Decidi regravá-la e convidei Marina Lima, prima-irmã da minha mãe, para gravar comigo, em duo de voz e violão, num clima intimista e de emoção.
O cantor das multidões, composta por Mu Carvalho, soa como homenagem a Moraes Moreira. Mu fez a seu pedido?
Mu, assim como Dadi, que fez parte da primeira banda que acompanhou meu pai, sempre foi muito amigo dele. Aí, o Mu compôs O cantor das multidões com Tuca de Oliveira, para homenageá-lo, num clima meio A Cor do Som.
O EP pode se transformar num álbum?
Não. Ele foi gravado, como disse antes, para homenagear meu pai. No início da pandemia havia começado a gravar um álbum e agora vou voltar a ele. Entre as músicas, há parcerias com Carlinhos Brown, Luiz Caldas, Fausto Nilo e João Cavalcanti. A ideia é lançar em junho.
*Matéria corrigida às 15h35. O fundador dos Novos Baianos não morreu vítima da covid-19, mas de causas naturais.