Pintar uma barba, colar pelos no peito, marcar os traços do rosto com maquiagem e usar faixas para esconder os seios são técnicas utilizadas por drags kings. Ao contrário das drags queens, que performam o gênero feminino, os kings se voltam para o masculino. Com diferentes identidades, eles se estabelecem dentro da arte para além de ocasiões festivas.
Patricia Lessa, professora da Universidade Estadual de Maringá (PR), passou a acompanhar os drag kings a partir dos estudos lesbianos realizados no doutorado em História na Universidade de Brasília (UnB). Hoje, ela tem em torno de dez personagens criados. Castellano de la frontera, Ricardão do pandeiro e Pablito são alguns deles. Um dos preferidos é o Zé do Ponto, um taxista.
"É um contexto que, muito antes de se dar nome, já existia. Alguns shows eram chamados transformistas nos anos 1980, onde tanto as mulheres faziam personagens masculinos, quanto os homens faziam algumas personalidades femininas. Isso era muito comum na vida noturna brasileira, principalmente, na lésbica", explica.
O conceito ganhou os holofotes em novembro de 2020 com estreia na Netflix do reality show Nasce uma rainha, comandado por Gloria Groove e Alexia Twister. Isso porque a atração teve um episódio destinado a Carlão Sensação, persona criada pela participante Carla Bernardes, roteirista, e único drag king do programa.
Ao Correio, ela explica que conheceu a arte por meio de uma matéria da Folha de S. Paulo, a qual mostrava o drag king brasileiro chamado Dom Valentim. “Foi um espanto saber que isso existia. No teatro, coincidentemente, os papéis que eu interpretei foram mais de homens, então eu performava muito a masculinidade”, analisa a roteirista, que encontrou na comunidade drag um espaço para se expressar artisticamente.
Sobre o processo de concepção do personagem, Carla enxerga que teve que ir além de si mesma. “Eu tive que criar uma persona minha um pouco distante. O Carlão sabe batucar, porque eu sei, mas ele não sabe dirigir, porque eu não sei. Mas, por exemplo, ele tem um autoestima do homem hétero, a Carla não tem isso. Ele xavecou a Gloria Groove, a Carla nunca faria isso", compartilha sobre uma situação da série em que tenta conquistar a cantora que é uma das apresentadoras.
Para Carla, a ideia do drag king é mostrar outras formas do masculino por meio da arte. “Ao performar a masculinidade, o que muitos drag kings e eu procuramos fazer é, na verdade, desconstruir essa figura que a gente encara como masculina. Para mim, é como se fosse um equilíbrio com o feminino. Esse homem que eu estou tentando retratar já é diferente do comum, porque é do ponto de vista de uma mulher. É um cara que eu gostaria que existisse", completa.
Outros masculinos
Em Brasília, Fernanda Alpino, atriz e diretora, criou o drag king Clint Esparradão, ao lado de outras atrizes, para interpretar personagens na peça A resistível ascensão de Arturo Ui, em 2019. Clint, segundo Fernanda, é um sertanejo universitário e leva o nome em referência a Clint Eastwood, diretor norte-americano com temáticas mais voltadas ao faroeste. “O esparradão tinha que ser no aumentativo para dar conta da grandiosidade do meu drag king (risos).”
A criação dos drag kings na peça A resistível ascensão de Arturo Ui, segundo Fernanda, buscou ter um posicionamento crítico sobre o clichê da masculinidade e também propor um diálogo com o feminino. “A performance de gênero feminina vai podar vários comportamentos que, de repente, a masculinidade permite, como arrotar e cuspir no chão”, pontua.
Do ponto de vista teórico e dos estudos de performances de gênero, Patricia Lessa amplia o debate. "A gente está dentro de um quadro binário, homem e mulher, masculino e feminino. A teoria queer para quebrar isso e dizer que entre esses dois polos existe uma infinidade de coisas que acontece", afirma.
*Estagiária sob supervisão de Adriana Izel