Quando começou a ler as primeiras linhas de A desumanização, do escritor português Valter Hugo Mãe, a atriz Maria Helena Chira visualizou imediatamente um palco. Viu, ali, as duas irmãs gêmeas protagonistas do romance cara a cara, num diálogo em que a memória se apresenta à realidade como condutora de um fio afetivo e delicado. A desumanização foi o primeiro livro do português a chegar às mãos da atriz, que logo entrou em contato com o diretor José Roberto Jardim para propor a montagem de uma adaptação para o teatro.
Em cartaz no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB), A desumanização ganhou vida apesar da pandemia, graças a ensaios na plataforma Zoom, experiências virtuais e muita vontade de levar para o palco um texto extremamente sensível. “É um texto triste, fala sobre morte, infância, morte de criança, o que é mais triste ainda, e outras questões femininas pesadas, como o aborto”, avisa Maria Helena.
No romance, uma irmã relembra sua gêmea, que morreu, mas cuja alma está entranhada no corpo e na mente da personagem. A falta de uma metade, a ausência do outro que era, também, um espelho, o sentimento de incompletude e de divisão pautam a fala da protagonista que, no palco, encontra a irmã, na atuação de Fernanda Nobre. “A gente trouxe a Fernanda para o projeto porque a gente quis brincar cenicamente com essa coisa do espelho e dessa mulher que nunca se sente completa e sempre tem um pedaço dela vagando”, conta Maria Helena.
No palco, o cenário de dois apartamentos idênticos, espelhados, sugere que as irmãs estariam juntas e fundidas uma na outra. Brincar com a confusão de quem é a narradora é uma das estratégias da dramaturgia, mas é na complexidade do texto de Hugo Mãe que a adaptação encontra o maior desafio. “Tenho impressão de que a linguagem do Valter, ao mesmo tempo que é superdensa, tem uma poesia que ajuda a digerir as coisas mais difíceis. Na dramaturgia, a gente não foge disso, dessa profundidade, do peso, do assunto, mas a imagem do palco traduzindo algumas coisas em imagem, e não em palavra, cria outra dimensão. A compreensão do texto fica mais suave, apesar de serem temas difíceis e dolorosos”, avalia Maria Helena.
O diretor José Roberto Jardim explica que boa parte da dramaturgia também se baseia na experiência das duas atrizes. Se, no livro, a personagem tem 11 anos, no palco ela é uma mulher de 36. A presença da dupla funciona como uma metáfora para as várias facetas da protagonista. Ela é uma só, mas Maria Helena e Fernanda vivem diferentes aspectos da sua personalidade. “Elas não são as meninas, é como se fossem essa menina que chegou aos 36 e começa a revisitar as suas histórias dentro dos seus apartamentos. São dois apartamentos espelhados, um desdobramento poético de uma mulher dentro de seu apartamento. Uma é alter ego da outra, uma é a voz interior da outra. Elas vão se completando como uma voz única, são o mesmo corpo e a mesma voz tentando entender o que ela viveu na infância”, explica o diretor.
Se o momento da vida da personagem é transplantado para um tempo diferente daquele narrado no romance, as palavras de Hugo Mãe são mantidas à risca. Jardim realizou um processo de cortes e edição, mas não mudou o texto. “O texto foi todo composto usando somente as palavras de Valter Hugo, mas rearranjando, reeditando, revalorizando. São frases escritas por ele, mas com todo um trabalho de edição e escolha. O trabalho corporal e visual é de complementação entre as atrizes, elas não contracenam entre elas, mas é como se fossem um corpo único”, avisa.
A desumanização
Adaptação de texto de Valter Hugo Mãe. Direção: José Roberto Jardim. Com Maria Helena Chira e Fernanda Nobre. Hoje, às 20h, no Centro Cultural Banco do Brasil. Até 21 de fevereiro, de quinta a domingo. Ingressos: R$ 30 e R$ 15 (meia). A lotação máxima é de 40% das cadeiras do teatro, com todas as normas de segurança referentes à covid-19. A venda de ingressos é realizada apenas on-line, pelo app ou pelo site da Eventim (www.eventim. com.br). Classificação indicativa: 14 anos.
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