Pierre Cardin será sempre lembrado pelo trabalho revolucionário na moda. O estilista italiano morreu na manhã da última terça-feira (29/12), aos 98 anos, no hospital americano de Neuilly-sur-Seine, próximo a Paris. A causa do óbito não foi divulgada (até o fechamento da edição), embora já estivesse internado no local. A família se manifestou por meio de um comunicado em que diz: “Dia de grande tristeza para toda a nossa família, Pierre Cardin não está mais aqui. O grande estilista que foi, atravessou o século, deixando à França e ao mundo uma herança artística única na moda, mas não apenas isso. Todos temos orgulho da sua ambição tenaz e da ousadia que demonstrou ao longo da vida”.
“O legado de Cardin é inegável. Ele foi responsável por uma das visões que o futuro tentava assumir na década de 1960 do século 20. Possuía uma noção muito particular de arrojo e elegância. No auge da criatividade, propôs formas geométricas, escultóricas para os vestidos femininos. Foi um grande visionário da moda, pensou coleções exclusivamente masculinas e peças unissex. Ele vestiu os Beatles. A gola mao e as linhas simples e retas dos ternos do quarteto inglês são criação de Pierre Cardin”, descreve Marco Antônio Vieira, doutor em teoria e história da arte e professor de moda e inovação.
Italiano de coração francês, Pierre Cardin nasceu em 2 de julho de 1922, em Treviso, e foi registrado como Pietro Costante Cardin. Filho de agricultores, a família se mudou para França para fugir do fascismo instalado por Benito Mussolini no país natal, quando o designer tinha apenas 2 anos de idade.
Os primeiros passos na moda foram dados aos 14 anos, quando Cardin iniciou como aprendiz de alfaiate. Depois, foi para uma casa de moda em Vichy e ainda trabalhou como contador na Cruz Vermelha. Mas foi em 1944 que ele ingressou na alta moda na casa Paquin, da estilista Jeanne Paquin. Três anos depois, o francês radicado foi o primeiro funcionário de Christian Dior, responsável por uma das grifes mais famosas do mundo.
Na década de 1950, abriu o próprio ateliê, onde começou a dar vida a uma estilo revolucionário por meio da introdução de novas formas e materiais no universo da moda. Em 1953, tudo começou e Pierre Cardin apresentou ao mundo a primeira coleção própria. Os trabalhos de toda vida do estilista estão expostos no Museu Pierre Cardin, em Paris.
Uma época dourada
O estilista ficou conhecido por dar um tom futurístico nas roupas, mas ele também iniciou o que seria o futuro das grifes. “Foi um dos pioneiros na moda ocidental a licenciar produtos, ou seja, assinar os itens mais variados para expandir as possibilidades mercadológicas da marca”, lembra Marco Antônio Vieira. A grife teve linha de perfumes, canetas, cigarros e até água mineral.
A principal característica de Pierre Cardin foi sempre trazer a alta moda para mais próximo de um público maior. O que antes era uma exclusividade da aristocracia, começou a se tornar uma realidade para mais pessoas. O estilista foi o primeiro a abrir postos de vendas de grife em lojas de departamento e também criou as coleções prêt-a-porter — prontas para vestir, em tradução literal, ou seja, as roupas não precisariam mais ser feitas sob medida. A introdução do homem na passarela também foi uma inovação de Cardin.
A forma distinta como via o público que consumia moda o levou a desbravar novos mercados. A grife do estilista foi a primeira a se aventurar na Ásia, fazendo sucesso em países como China e Japão. Em plena Guerra Fria, também colocou o selo Pierre Cardin em terras russas.
“Indubitavelmente, ele foi um homem à frente do tempo. Não apenas pela explícita inclinação futurista das criações, sobretudo na década de 1960, mas essencialmente por toda a concepção do que uma marca de moda pode ser, ampliando a noção de assinatura de roupas produzidas com exclusividade para uma serialização. Ele foi um dos grandes idealizadores do que se entende por prêt-à-porter. Um dos últimos desfiles dele foi um poema onírico futurista e delirante. Ele compreendeu como poucos que trabalhar com moda é estar em descompasso com o tempo dos outros por excelência”, completa o curador e professor.
Muito além da grife
O estilista não viveu só de fazer roupas, em dado momento da carreira, ele decidiu diversificar a marca e desenhou móveis, itens de decoração, interior de carros. Também abriu lojas para vender os móveis, além de redes de restaurantes e hotéis.
Cardin também trabalhou assinando figurinos de filmes e séries. Entre os trabalhos mais famosos, a adaptação de Ana Karenina (1975), o longa O espião de dois mundos (1968) e o seriado Os vingadores (1967-1969). Em 2019, ganhou o filme próprio, o documentário House of Cardin, que contou a história e legado do designer com imagens raras de arquivo e entrevistas com grandes nomes da moda, como o pupilo de Pierre, Jean-Paul Galtier, a modelo Naomi Campbell e o cantor Alice Cooper.
*Estagiários sob a supervisão de José Carlos Vieira
Análise da notícia
Revolucionário
Pierre Cardin deixou sua marca no universo da alta-costura e está entre os grandes responsáveis pela democratização da moda nos anos 1960. Um dos principais nomes entre as maiores grifes do mundo acabou expulso da Chambre Syndicate de la Haute Couture, a Câmara Sindical da Alta Costura, quando lançou sua coleção prêt-à-porter.
Lado a lado com outros estilistas, como Paco Rabanne, Rudi Gernreich e André Courrèges, apostou em tecidos vivos e arrojados, embarcando na ideia de modernidade abraçada pelos jovens. Além dos tecidos modernos, a modelagem ousada com formas geométricas e a famosa minissaia, fizeram do estilista um dos expoentes na moda desde a era espacial e futurista dos anos 1960 até os dias atuais.
João Braga, professor de história da moda, da Fundação Armando Álvares Penteado (Faap), define o estilista como um visionário e um dos grandes estetas da moda. Braga ressalta que apesar das roupas de confecção serem uma realidade desde o século 19, Cardin esteve entre os primeiros estilistas de Couture que democratizaram sua grife.
Além de difundir a moda e a minissaia, cheia de textura, volume e silhuetas modernas, Cardin também revolucionou o guarda-roupa masculino. Fora do padrão clássico, tirou os botões dos paletós e investiu em jaquetas com zíper, coisas consideradas altamente tecnológicas para a época, além de apostar em cores como o prateado, sempre remetendo a uma ideia de futuro no espaço sideral.
“Ele revolucionou através de cores, tecidos e formas, foi expulso e readmitido na Chambre Syndicate de la Haute Couture e trouxe o imaginário da moda conceitual. Foi uma vida quase centenária fazendo história, mantendo-se fiel a sua visão de mundo”, completa Braga.