Nos últimos anos, o escritor Monteiro Lobato, criador do clássico infantil brasileiro O Sítio do Picapau Amarelo, passou a ter a carreira e a obra contestadas. O primeiro motivo foi a percepção de que o conteúdo tinha conotação considerada racista. Depois, a controvérsia se deu a partir de apontamentos de que o autor esteve próximo do movimento de eugenia no Brasil. Um dos exemplos concretos de situação de racismo está na representação de Tia Nastácia na obra infantojuvenil do Sítio do Picapau Amarelo. Além de expressões preconceituosas destinadas a ela, a personagem foi a única que não passou por nenhuma mudança visual desde o lançamento da primeira história em que aparece, A menina do narizinho arrebitado, obra que completou 100 anos em 2020.
A bisneta do autor, Cleo Monteiro Lobato, encontrou um jeito de reparar as citações racistas de Lobato ao reeditar a obra com adaptações que condizem com o contexto atual. Dessa forma, fez a supressão de termos racistas, como “negra beiçuda”, usados para denominar Tia Nastácia na nova coleção de Reinações de Narizinho. “O que eu fiz foi pegar a personagem da Tia Nastácia, que era tratada com a normalidade dos anos 1920 — o que não é normal nem aceitável em 2020 — e a chamei pelo nome”, conta.
Apesar disso, ela faz questão de ressaltar que o bisavô não era racista. “Resolvo essa polêmica com cinco palavras: Monteiro Lobato não era racista. Sei disso pela vivência familiar. Minha avó foi a filha que mais conviveu com Lobato”, afirma. Ela cita, por exemplo, o trabalho do escritor de ensinar presos em Campos de Jordão, interior de São Paulo, a ler. Para ela, o que fica evidenciado na obra “é o racismo estrutural da sociedade brasileira”.
O historiador mineiro Juvenal Lima Gomes vê com bons olhos a reedição feita por Cleo Monteiro Lobato. “É preciso entender esse autor em seu contexto. Discutir esse contexto é tão importante quanto se deliciar com a sua trama. Esse exercício de questionar é o que a Cleo faz. Ela chama a atenção para esses elementos, que, para muitas pessoas, passa despercebido. Essa é a função da arte, provocar a mudança de pensamento em relação a algo que está posto”, defende.
Gomes acredita que é preciso olhar o conteúdo de Monteiro Lobato sob a perspectiva da época em que foi escrito e lançado. “Não estudamos história para julgar e tentar avaliar, com os valores de hoje, as posições do passado. Nós somos seres em transformação e esse é o maior brilhantismo”, afirma. Mesmo assim, ele reforça que atualizações são necessárias para que reflitam as mudanças ocorridas na sociedade. “Esse é um tema muito caro para nós, negros, porque deixou marcas na sociedade. As pessoas falam ‘agora tudo virou racismo’. Não, as pessoas é que passaram a ter mais consciência e sensibilidade sobre um tema que sempre as machucou. Hoje, minha filha terá a oportunidade de ler Lobato se deparando com personagens que não serão caracterizados pela pele, mas pelo papel no enredo. Isso é valioso”, completa.
Adaptação da obra
O primeiro livro da coleção foi lançado em 6 de dezembro durante evento virtual para celebrar o centenário de Narizinho. A obra é Narizinho arrebitado: Reinações de Narizinho — Livro 1 (Editora Underline Publishing), que também ganha edição em inglês. Na atualização, a obra passou a ter um glossário de palavras em desuso no português. A adaptação na língua inglesa teve a tradução auxiliar de Nereide Santa Rosa. As ilustrações são de Rafael Sam.
Os demais lançamentos da coleção serão divulgados entre 2021 e 2022. Para o próximo ano, estão confirmadas as reedições de Sítio do Picapau Amarelo, com divulgação na semana Monteiro Lobato, em abril; e de Marquês de Rabicó e o casamento da Narizinho, previsto para o Dia das Crianças. As demais obras ficarão para 2022.
A menina do narizinho arrebitado
De Monteiro Lobato. Edição: Cleo Monteiro Lobato. Ilustração: Rafael Sam. Preço: R$ 14,99 (e-book). À venda na Amazon.