O cinema de curta-metragem sempre teve dificuldade para encontrar espaço fora do circuito de festivais. De tempos em tempos, a obrigatoriedade de os cinemas exibirem filmes no formato foi proposta, e até colocada em prática, mas sem continuidade. E, assim, os curtas ficaram sem um canal de distribuição adequado. Bem, até a chegada da internet e da era dos vídeos virais.
Para cineastas que participam do 53º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, filmes de poucos minutos nunca foram tão atuais. “Estamos na era da cibercultura, da informação digital. O curta possui um formato que tem tudo a ver com estes tempos”, analisa Anderson Bardot, diretor de Inabitáveis, um dos curtas selecionados para a Mostra Oficial Curta-Metragem, que começa hoje (16/12).
Assim, enquanto produtores de longas entendem a necessidade de um festival 100% on-line, mas lamentam o fato de seus filmes não serem apresentados na imensa tela do Cine Brasília, a turma dos curtas não sofre tanto. “(Com esse formato), a gente dá um respiro para as pessoas que estão em casa e não podem sair nesta quarentena. Inclusive, abre-se uma discussão sobre as novas formas de distribuição do cinema”, complementa Bardot.
Denúncias
Nesse contexto, ser capaz de transmitir uma mensagem — poética ou política, ou ambas —, em cinco, 10 ou 15 minutos, passa a ser o desafio. E mensagens incisivas não faltam na lista das 12 obras selecionadas, entre 453 inscritas. “Para mim, (realizar o filme) é ser porta-voz de uma palavra de responsabilidade sobre o que somos, quem somos”, afirma a baiana Lilih Curi, diretora de Distopia, que gira em torno de um casal de irmãos que precisa cuidar do pai que sofre com o mal de Alzheimer. “É um filme-denúncia, antes de mais nada. Ele atenta para as nossas mazelas, para aquilo que não gostamos de assumir que somos: uma sociedade violenta.”
A denúncia das mazelas brasileiras também norteou Rodrigo Ribeiro, de Santa Catarina, criador de A morte branca do feiticeiro negro. “Nesse período tão obscuro que o país atravessa, tratar sobre o tema da escravidão, de seus desdobramentos e do funesto legado que deixou se faz mais que urgente e necessário”, afirma. “A brutalidade dos tempos presentes só intensifica a necessidade de se contar histórias marginalizadas e apagadas, que sempre tiveram à sombra dos registros oficiais.”
*Estagiária sob a supervisão de Humberto Rezende
ASSISTA
Os filmes da Mostra Oficial Curta-Metragem estarão disponíveis para o público, a qualquer hora, de 16 e 20 de dezembro, no site canaisglobo.globo.com. Para mais informações, acesse cultura.df.gov.br/53-fbcb-programacao
Curtas-metragens da Mostra Oficial
A morte branca do feiticeiro negro (Rodrigo Ribeiro, Documentário, SC, 11min; 16 anos): Por meio de um poético ensaio visual, o passado escravista brasileiro é colocado em questão em uma jornada íntima. O documentário propõe reflexões sobre silenciamento e invisibilização do povo preto em diáspora.
A tradicional família brasileira KATU (Rodrigo Sena, Documentário, RN, 25min; 12 anos): Em 2007, 12 adolescentes pertencentes ao Eleutério do Katu, no Rio Grande do Norte, compõem em um ensaio fotográfico, realizado em reconhecimento aos povos originários Potiguaras. Doze anos depois, o fotógrafo retorna para o local para conhecer mais da história dos protagonistas.
Distopia (Lilih Curi, Ficção, BA, 10m38s; 14 anos): Hiram é um viúvo que sofre de Alzheimer e necessita de cuidados diários. Laura, filha mais velha, costuma fazer isso, mas devido a um compromisso em uma noite, a tarefa passa para o irmão Lúcio. A relação dos dois, entretanto, é marcada por lembranças terríveis.
Guardião dos caminhos (Milena Manfredini, Experimental, RJ, 3 min; livre): O orixá Exú, senhor de todos os caminhos, possui todo um simbolismo e mítica. No curta, leituras do mensageiro de caminhos são apontadas, acompanhado pela voz de Zezé Motta como fio narrativo.
Inabitável (Matheus Faria e Enock Carvalho, Ficção, PE, 19m57s; 10 anos): A narrativa surge a partir do olhar de uma mãe que tem a filha desaparecida e como isso representa a realidade de outras pessoas vítimas da violência de gênero e raça no Brasil. Entre o medo e a desesperança do futuro, o curta aparece como um escape para um mundo melhor.
Inabitáveis (Anderson Bardot, Ficção, ES, 25m; 12 anos): Inabitáveis, no curta, é um espetáculo de uma companhia contemporânea de dança, que tem como tema a homoafetividade negra. Paralelo aos ensaios, o coreógrafo conhece Pedro, um jovem negro que não se identica enquanto menino.
Noite de seresta (Muniz Filho, Sávio Fernandes, Documentário, CE, 19m; 12 anos): Kátia é uma mulher que vive cantando acompanhada por karaokê e que se reconhece no mundo por meio do ato de cantar. Com base na frase "quem canta seus males espanta", ela tem a alma e o corpo expandidos nos momentos em que dá voz a uma música.
Ouro para o bem do Brasil (Gregory Baltz, RJ, Documentário, 17m24s; 14 anos): Uma análise sobre a história do período de 1964, dias após o golpe militar, quando o empresário Assis Chateubriand criou a campanha "Ouro para o bem do Brasil". Baseava-se no convite para a população doar bens, a fim de acabar com a dívida externa do país
Pausa para o café (Tamiris Tertuliano, Ficção, PR, 5min; livre): Sheila, durante o intervalo do trabalho, aproveita para procurar Dona Ângela para falarem sobre um assunto importante.
República (Grace Passô, Ficção, SP, 15m30s; livre): Curta-metragem filmado em casa, no início da quarentena, em São Paulo. Na narrativa, Passô recebe um aviso de que o Brasil não existe e, na verdade, é o sonho de alguém. Por isso, a qualquer momento esse indivíduo pode acordar e tudo corre o risco de desaparecer.
Quanto pesa (Breno Nina, Ficção, MA, 23min; 16 anos): “Não se pode separar paz de liberdade, porque ninguém consegue estar em paz a menos que tenha sua liberdade.” Esta frase é de Malcolm X e é o que inspira a produção.
Vitória (Ricardo Alves Jr. Ficção, MG, 14min; 12 anos): Vitória faz parte das muitas operárias de uma fábrica de tecidos. Em um dia específico do trabalho, ela considera a possibilidade de agir em coletivo e transformar a ordem vigente.