Tradição no Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, a Mostra Brasília, que começa hoje e segue até domingo, com exibição em streaming (na aba do Canal Brasil da plataforma Canais Globo), é caracterizada por apresentar um panorama do cenário audiovisual do DF. Na 53ª edição do evento, a seleção composta por 12 filmes — quatro longas-metragens e oito curtas-metragens — segue a tendência do festival, com predominância de documentários: nove, ao todo (veja a lista completa abaixo).
“A tradição do documentário no Brasil cresceu. Tem muito filme sendo feito nessa fase agora de pandemia e também por causa dos problemas com a Ancine, nos últimos dois anos (a falta de recursos para o setor do audiovisual). O documentário tem sido uma alternativa de modelo de produção”, destaca a cineasta Dácia Ibiapina.
A diretora é responsável por Cadê Edson?, um dos quatro longas da Mostra Brasília. Antes de chegar ao festival candango, a produção percorreu outros eventos no Brasil, como Cine Cipó e CachoeiraDoc, e teve exibições na França e na Inglaterra, além de estrear no início do ano na Mostra de Cinema de Tiradentes (MG).
A montagem surgiu de um trabalho iniciado por Dácia em 2012, quando acompanhou a Ocupação Novo Pinheirinho, em Ceilândia, feita pelo Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST). No ano seguinte, ela registrou a Ocupação Jarjour, na entrada da Epia, em Taguatinga. Até que, em 2015, ficou sabendo que alguns dos militantes haviam sido presos, entre eles, Edson Francisco da Silva. A partir daí, a diretora iniciou a busca pelo homem de 40 anos, o que perpassou a ocupação e a desocupação do Torre Palace, em 2016. “O filme percorre essa trajetória dos movimentos, desde as primeiras ocupações até a criação do MRP (Movimento Resistência Popular)”, explica.
Personagens centrais
A partir de um personagem, Dácia acaba mostrando uma realidade ampla, estratégia narrativa utilizada em outras produções da Mostra Brasília. O recurso é utilizado, por exemplo, no longa-metragem O mergulho na piscina vazia (Edson Fogaça), que conta a história do cabeleireiro Derly Silva, e no curta Delfini Brasília, olhar operário (Maria do Socorro Madeira), que narra o dia a dia do marceneiro João Batista Delfini.
O cineasta Edson Fogaça conta que soube da história de Derly Silva, que foi cabeleireiro da primeira-dama Ruth Cardoso durante a presidência de Fernando Henrique Cardoso, pela amiga Isabel de Paula, que trabalhou com o profissional e o reencontrou 20 anos depois. “Ela levou um susto, porque pensou num Derly e encontrou outro. Ao conversar com ele, lembrou de mim, pensou que a história pudesse dar um filme”, lembra.
Fogaça acompanhou Derly por um ano e traz, no filme, o desejo do cabeleireiro de vencer a dependência do crack. Além do depoimento do próprio personagem, o documentário conta com entrevistas com pessoas ligadas a ele. “No início, fiquei preocupado em abordar um tema que eu não tinha domínio. Mas achei que era um depoimento potente. Fui construindo a narrativa a partir do que ele me contou, depois falando com pessoas que ele me indicou e foram importantes. Também buscamos um psicólogo. A ideia era abordar isso da forma mais humana possível”, comenta.
Esta será a primeira exibição de O mergulho na piscina vazia, feito com recursos próprios de Fogaça. Ele se diz empolgado com as exibições em streaming. “O contato com o público no festival é insubstituível. Por outro lado, acho interessante essa capilaridade que o filme pode ter. Com certeza, vai chegar a mais pessoas”, avalia.
Olhar sobre a cidade
Quando se trata da temática das produções, a Mostra Brasília também aponta outro padrão: a prevalência de obras em homenagem à capital federal, com histórias que celebram a memória afetiva da cidade no ano do 60º aniversário. É o caso dos longas Utopia distopia (Jorge Bodanzky), sobre o período dos anos 1960 na Universidade de Brasília; e Candango: Memórias do Festival (Lino Meireles), que faz um panorama dos 50 anos do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro.
Entre os curtas estão Brasília 60 + 60: Do sonho ao futuro (Raquel Piantino), que retrata desde a ideia da construção da capital no Centro-Oeste até a nova geração; e Questão de bom senso (Péterson Paim), que traz o ponto de vista de Toniquinho, o goiano conhecido como “o verdadeiro pai de Brasília”, narrando a construção da cidade.
Apesar de se relacionar com as outras produções da mostra pelo tema, Brasília 60 + 60: Do sonho ao futuro é o único desenho animado de todo o festival. “Acho curioso pensar que a animação pode ter um espaço menor em alguns festivais. Mas acho que é importante as pessoas olharem para esse formato e para essa linguagem”, afirma Raquel Piantino, diretora do curta-metragem com roteiro de Claussen Munhoz e idealização de Tereza Padilha, fundadora da Cia Teatral Mapati.
Narrativas ficcionais
Apenas dois filmes dos 12 da Mostra Brasília não tratam de histórias reais. Representando o gênero da ficção, a seleção tem Algoritmo, de Thiago Foresti, e Do outro lado, de David Murad. O primeiro se passa num futuro distópico em que um governo totalitário controla o fluxo de informações. A história é contada a partir da perspectiva de Nicole, uma estudante de veterinária de 18 anos tem a vida investigada pelo Algoritmo.
Já a narrativa de Do outro lado é mais leve, discutindo temas universais — o medo e o desejo do desconhecido — a partir da história de um menino que mora numa casa à beira de uma estrada. Diariamente, ele observa o outro lado da rua e repara na beleza dos passarinhos e das folhas do lado de lá. Sem coragem de seguir, ele se vê balançado quando algo inesperado acontece.
O curta de Murad surgiu há 10 anos. “É um tema que me interessa muito. Tenho outros trabalhos que abordam a travessia, de ter coragem de meter as caras e ir para o mundo. Acho que esse filme consegue resumir isso. É um filme sem diálogo, só a solidão desse garoto e esse sentimento de que é preciso dar esse passo na vida”, define o diretor.
ASSISTA
O Festival de Brasília 2020 ocorre de maneira virtual. De hoje até domingo, na aba do Canal Brasil no site canaisglobo.globo.com, os filmes da Mostra Brasília podem ser assistidos em qualquer horário.
Os 12 filmes da Mostra Brasília 2020:
Longas-metragens
- Cadê Edson? (Dácia Ibiapina, Documentário, 72min; 12 anos): Acompanha a trajetória dos movimentos sociais em defesa da moradia popular no Distrito Federal com ênfase no percurso do militante Edson Francisco da Silva, que chegou a ser preso.
- O mergulho na piscina vazia (Edson Fogaça, Documentário, 83min; 16 anos): História do cabeleireiro Derly Silva que construiu carreira de sucesso nos anos 1990 e depois entrou em contato com o universo das drogas, levando a vida a um rumo inesperado.
- Utopia distopia (Jorge Bodanzky, Documentário, 74min; livre): Jorge Bodanzky recorre às próprias memórias afetivas do período em que cursou a Universidade de Brasília na década de 1960.
- Candango: Memórias do Festival (Lino Meireles, Documentário, 119min; 16 anos): Resgata a memória dos 50 anos do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro a partir do depoimento de pessoas que vivenciaram o evento.
Curtas-metragens
- Algoritmo (Thiago Foresti, Ficção, 20min; 12 anos): Governo totalitário de um futuro distópico controla o fluxo de informações e as pessoas começam a sumir misteriosamente. Nicole, de 18 anos, é a próxima investigada.
- Brasília 60 + 60: Do sonho ao futuro (Raquel Piantino, Animação, 13min; livre): Em seis fases, a animação mostra o início do sonho da construção de Brasília até a criação de uma geração com contato próprio com Brasília.
- Curumins (Pablo Ravi, Documentário, 17min; livre): Apresenta as particularidades de duas etnias indígenas: Fulni-ô, que vive em área urbana, e Kamayurá localizada na maior reserva indígena do Brasil, no Parque Indígena do Xingu.
- Delfini Brasília, olhar operário (Maria do Socorro Madeira, Documentário, 22min; livre): Cotidiano e relatos de João Batista Delfini, 98 anos, marceneiro na construção de Brasília sobre o período de criação da cidade.
- Do outro lado (David Murad, Ficção, 15min; livre): Um garoto de 9 anos nunca atravessou para o outro lado da estrada. Para ele, o outro lado é como outro planeta. Desperta medo e admiração. Até que algo inesperado acontece e muda o destino dele para sempre.
- Eric (Letícia Castanheira, Documentário, 13min; livre): Acompanha os devaneios da mãe de Eric, uma criança de 10 anos com síndrome de Down que possui dificuldade na comunicação.
- Questão de bom senso (Péterson Paim, Documentário, 29min; 10 anos): História de Brasília narrada por Toniquinho, o goiano que, no primeiro comício da campanha presidencial de JK, em Jataí, levantou uma questão que mudou os rumos da nação.
- Rosas do asfalto (Daiane Cortes, Documentário, 19min; 12 anos): Relato humanizado de pessoas da terceira idade que vivem do trabalho sexual. As personagens reais contam histórias de violência, abandono, preconceito e superação.
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