Durante anos, um espaço em Brasília, na 708/709 Norte, subverteu a lógica e deu ares artísticos para uma oficina mecânica. Era a Teatro Oficina Perdiz, um lugar de poesia e criação entre graxa, maçaricos, carros, plateia e personagens de todo tipo. Apesar da efervescência cultural que fez da oficina um patrimônio da capital federal, hoje, resta apenas um terreno tomado pela desconstrução.
Um encontro entre um encenador, uma dramaturga e um cineasta resgatou as memórias da Oficina Perdiz e as transformou em um jogo composicional entre o cinema e o teatro. É o trabalho Aquilo que não podem demolir enquanto eu puder falar, uma parceria entre o Teatro do Concreto e a Diazul de Cinema. O projeto, que reconstrói as ruínas do antigo espaço a partir do olhar feminino de três atrizes, foi apresentado pela primeira vez na 21ª edição do Festival Internacional de Teatro de Brasília.
“A Oficina Perdiz foi um espaço cultural muito importante para o DF e a salvaguarda dessa memória é um direito social. Demolir paredes e construir outras em novos lugares não dá conta de preservar as memórias, perde-se a ressonância afetiva de tudo aquilo que se viveu no espaço original. E Brasília tem muito forte o culto à monumentalidade de determinados espaços e à sua própria arquitetura. Então, penso que a arte pode ter um papel importante em fazer ver o que não está dando, escavar o tempo e fazer vibrar novamente vozes quase sempre à margem. Resgatar memórias da Oficina Perdiz é também afirmar a importância do teatro na criação de imaginários para a cultura do DF ontem, hoje e amanhã”, afirma o diretor do espetáculo, Francis Wilker.
Em cena, as atrizes Micheli Santini, que integra o Teatro do Concreto, Adriana Nunes, uma das fundadoras da Cia de Comédia Os Melhores do Mundo, e Lucinaide Pinheiro revisitam memórias pessoais, bem como espetáculos que marcaram a existência da Oficina Perdiz. São eles: Bella Ciao, Esperando Godot, e Diário do Maldito, que teve direção de Wilker. O mesmo cenário se desdobra em histórias diferentes a partir do olhar feminino, uma escolha do diretor. “Embora seja homem, gosto de pensar como a minha ação na vida e na arte pode contribuir para fortalecer esse imaginário, das mulheres no centro, esse projeto de país me interessa”, justifica.
Enquanto elas acordam as lembranças, o lugar, que um dia foi sonho e também realidade de gerações de artistas da cidade, vem à tona com afeto e metamorfoses. “Mágico, plural, amplo a experimentos, criação, fruição poética para artistas e plateias. Essa era a atmosfera do Teatro Oficina Perdiz”, descreve Lucinaide. “Estar novamente no espaço do teatro, hoje totalmente abandonado, causou-me tristeza e indignação. Uma grande perda a descontinuação de uma trajetória de êxitos que consolidou-se como espaço único de criação, de difusão e de fruição cultural para o Distrito Federal”, lamenta a atriz.
Como o próprio nome diz, o trabalho é um resgate do passado, mas lança indagações, questionamentos e reflexões sobre o presente e o futuro. “Estamos falando desse momento em particular que estamos vivendo. Memória, afeto e valorização da nossa arte, da nossa cultura. É uma experiência em que a gente revisita o espaço, a memória e, principalmente, com a intenção de reconstruir um momento da nossa cultura e acreditando fortemente que é a partir da arte e da cultura que nos seremos e somos melhores”, afirma o cineasta Marcelo Díaz, que, em 2006, também produziu o documentário Oficina Perdiz.
Confira!
Depoimento
Mágico, plural, amplo a experimentos, criação, fruição poética para artistas e plateias. Essa era a atmosfera do Teatro Oficina Perdiz. Esperando Godot, de Samuel Beckett, dirigido por Mangueira Diniz foi o espetáculo inaugural do Teatro Oficina em 1989. E que inauguração! Os últimos acabamentos nas arquibancancadas. O cheiro da fumaça dos maçaricos ainda exalava quando as primeiras pessoas entravam curiosas na oficina... Oficina? De carro? De teatro? O que é isso? Kombi, graxa... cheiros... muito barulho... O chão batido, a luz dos maçaricos, o som dos tornos mecânicos e o silêncio dos personagens becktinianos criavam uma atmosfera reflexiva e inédita! Em Bella Ciao, de Luis Alberto de Abreu, dirigido por Mangueira Diniz e Francisco Rocha em 1991, impressionou a todos as tantas possibilidades cênicas e a capacidade de inventividade artística. Cada cantinho transformava-se admiravelmente! O porto dos navios chegando da Europa lotados de imigrantes fugidos da Guerra... O cafezal e a colheita dos camponeses com os atores vestidos de sandálias de couro e roupas de algodão cru... A plateia era convidada a se deslocar e integrar-se às cenas: levados pelo cheiro inebriante da macarronada à italiana da cozinha de Carmela Baracheta eu via olhos enormes com vontade de comer... Os gritos empolgados e sussurros dos integrantes dos movimentos anárquico sindicais e dos planos secretos de fundação do Partido Comunista Brasileiro. “Justiça! Justiça!” Eram o nosso grito de guerra durante a cena da Greve Geral de 1922 em São Paulo-Brasil!
Foi muito emocionante reviver essa parte da minha história artística e de vida durante as gravações do projeto Aquilo que não podem demolir enquanto eu puder falar, dirigido por Francis Wilker, com dramaturgia de Ligia Sousa e filmado por Marcelo Díaz. Estar novamente no espaço do teatro, hoje totalmente abandonado, causou-me tristeza e indignação. Uma grande perda a descontinuação de uma trajetória de êxitos que consolidou-se como espaço único de criação, de difusão e de fruição cultural para o Distrito Federal. Muito valioso por contribuir durante mais de duas décadas para a classe artística do DF, oportunas possibilidades de se permanecer mais tempo em temporada, quando as pautas oficiais da Secretaria de Cultura/GDF destinavam apenas uma ou duas semanas de ocupação para os produtores e artistas locais.
Luchina... Maria... Andreone...Pazzo... quantas risadas, lágrimas, encantos... A oficina era a Casa dos Barachetas, a arquibancada transformada em ponte que abrigava Giovani e Carmela com o menino Genarino e a pequenina Maria no colo da Mãe; o encontro dos trabalhadores e solo dos desvalidos - sonhadores por uma condição de vida melhor no Brasil e o território de interação poética entre artistas e espectadores-participantes.
Memórias, lágrimas, afetos, saudades, e a esperança... Ser poesia e não se deixar sucumbir, resistir fortemente e existir a novas vontades e danças criativas.
Lucinaide Pinheiro, atriz, arte-educadora e gestora de políticas públicas
Três perguntas para Francis Wilker:
Como avalia o impacto e o poder de resgatar essas memórias em tempos de pandemia e de momentos de desvalorização da cultura de um modo geral?
O Brasil vive um momento político tenebroso em que atacar o pensamento crítico, a arte, a ciência faz parte de um projeto de governo. Por outro lado, a impossibilidade de frequentarmos os teatros em razão da pandemia fez com que muitos artistas revisitassem seus arquivos e registros, um pouco matar a saudade, um pouco reafirmar a potência revolucionária do encontro. É nesse contexto que a memória emerge como instrumento de luta social, como aquilo que não podem nos roubar, destruir. Nosso país precisa urgentemente lembrar mais, conhecer as marcas que esse chão carrega, ser mais cuidadoso com todas as lutas que vieram antes para construirmos um projeto de país em que a liberdade, a democracia, a diversidade cultural e o conhecimento sejam valores inegociáveis. Olhar o que restou de tudo que o Teatro Oficina Perdiz gerou de poesia nessa cidade, em alguma medida, é também uma metáfora de Brasil. Faz pensar em tudo de valioso que pode ser destruído e, também, de tudo que fizemos, que sonhamos, que cantamos, que somos. Precisamos fazer vibrar a nossa potência de criação, nossa pulsão de vida em meio a ruína. Acho que foi essa causa que fez com que o Cena Contemporânea, o cineasta Marcelo Díaz, a dramaturga Lígia Souza e as atrizes Adriana Nunes, Lucinaide Pinheiro e Micheli Santini abraçassem esse projeto de uma maneira tão intensa e afetuosa.
Por que escolheu trabalhar com o olhar feminino?
Como homem gay, cidadão e artista me interessa muito o ponto de vista das mulheres para a vida e as questões do nosso tempo. Desde quando idealizei esse projeto, via essas três atrizes nele e sou muito grato por terem aceitado o convite. Me interessava o modo delas de ver, de narrar, de lembrar. Agora, isso não faria sentindo tendo uma equipe inteira de homens atrás das câmeras, então, convidei a dramaturga paranaense Lígia Souza para estar comigo e Marcelo pensando tudo, só sei trabalhar de maneira colaborativa. A Lígia trouxe como metodologia entrevistar as atrizes antes de propor um roteiro, esse lugar da escuta foi muito bonito. Depois disso, ela fez conexões incríveis entre os textos teatrais e as memórias narradas por essas três mulheres que dariam umas três obras, e acompanhou filmagem, edição, tudo. Contamos também com a Dani Azul na direção de fotografia, então esse olhar feminino se fez presente não apenas como ideia ou tema. E essas mulheres em cena, como quem reconstrói o que foi destruído por homens que governam as cidades e colocam o interesse financeiro acima de tudo, é muito simbólico. Embora seja homem, gosto de pensar como a minha ação na vida e na arte pode contribuir para fortalecer esse imaginário, das mulheres no centro, esse projeto de país me interessa.
Para você, o que representa participar da edição comemorativa de 25 anos do Cena?
Pouca gente sabe como se iniciou a minha relação com o Cena. Primeiro, fui espectador da programação do festival, depois trabalhei levando os lanches nos camarins de alguns teatros, lembro até hoje de derramar uma garrafa de café inteira no meu carro. Nos anos seguintes, estava como artista junto com meu grupo Teatro do Concreto na programação do Cena. Anos mais tarde, colaborei como um dos curadores do festival. Então, tenho um carinho e admiração imensa pelo Cena, acho que o festival tem uma dimensão pública de extrema importância no DF, porque possibilita o acesso a criações artísticas de tantos lugares do mundo e isso amplia os repertórios culturais de um povo. O Cena tem ainda uma contribuição na formação técnica, estética e crítica de muitos artistas da cidade por meio dos debates, oficinas, palestras e encontros. Gosto de pensar também como o festival gera memória, quantas pessoas devem passar ali pelo Museu da República e lembrar que um dia ocupou aquela arquibancada e assistiu Sua Incelença Ricardo III, do grupo potiguar Clowns de Shakespeare, ao ocupar diferentes espaços da cidade, o festival vai também criando uma nova cartografia de cidade. Me sinto então na festa de aniversário de um amigo e parceiro que gosto muito.
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