Parar, definitivamente, não era um verbo pertencente ao vocabulário do cineasta argentino naturalizado brasileiro Hector Babenco. “Estar filmando” era viver um dia a mais. O tempo era curto e uma grande obra ainda não havia sido feita — dizia ele, indicado ao Oscar de melhor direção em 1986, pelo longa O beijo da Mulher Aranha. Até os últimos dias de vida, aos 70 anos, após uma batalha de mais de 30 anos contra o câncer, seu coração tentou resistir. Ele teve quatro paradas cardíacas. “Alguém tem que ouvir o coração e dizer: parou”, afirmava Babenco.
Hoje, 34 anos depois, um documentário narrado por ele, cantarolando “I’m in Heaven, and my heart beats so that I can hardly speak” (Eu estou no céu, e meu coração bate tanto que mal posso falar, em tradução livre) — canção clássica de Fred Astaire —, filmado, produzido e dirigido pela amada esposa e atriz Bárbara Paz representa o Brasil na disputa por uma vaga na mais importante premiação do cinema. Apesar do nome e da filmagem em preto e branco, Babenco — Alguém tem que ouvir o coração e dizer: parou é, acima de tudo, o retrato de um olhar apaixonado. Primeiro, o de Bárbara pelo marido com quem viveu seis anos. Segundo, o de um homem que escolheu o Brasil como, não apenas cenário dos filmes, mas moradia e que, como exímio observador do tempo, do espaço, das mazelas humanas, do ser humano, amava a arte e o cinema.
“Tudo começou em um leito de hospital. Fiquei com medo de que não houvesse mais tempo de registrar esse homem, a paixão por esse homem. Queria que todo o mundo escutasse as coisas que eu escutava, enxergasse além dos filmes deles, o pensador que ele era, que lutava para se manter vivo. Fazer cinema era algo que mantinha ele vivo”, relembra Bárbara sobre o nascimento do projeto. “Ele topou, confiava plenamente no meu olhar. Ele perguntou quando começamos e eu respondi: já comecei”, acrescenta aos risos.
Nessa imersão na vida e na obra de Hector Babenco, as cenas se misturam entre imagens gravadas em casa, nos hospitais, ensinamentos do cineasta para a diretora sobre o uso da lente de câmera, por exemplo, a troca de olhares apaixonada, as mãos que se entrelaçam pela confiança, entrevistas antigas do argentino, além de trechos de filmes do diretor de longas como Pixote: a lei do mais fraco (1981) e Carandiru (2003). Diante dos olhos de Bárbara e, agora do mundo, Babenco desnuda medos e anseios, memórias, reflexões, processos criativos e o amor pela arte, em um confronto entre o corpo debilitado e a mente em plena atividade.
O documentário, que chega esta semana aos cinemas, teve a estreia mundial no ano passado, durante o Festival de Veneza, quando recebeu o prêmio de melhor documentário na Mostra Venice Classics e o prêmio Bisato D’Oro 2019 (Prêmio paralelo ao 76º Festival Internacional de Cinema de Veneza dado pela crítica Independente). Babenco — Alguém tem que ouvir o coração e dizer: parou (clique aqui e confira as sessões do filme) também já conquistou o prêmio de melhor documentário no Festival de Mumbai (Índia).
Entrevista // Bárbara Paz, diretora e produtora de Babenco - Alguém tem que ouvir o coração e dizer: parou
Como foi receber a notícia da indicação brasileira ao Oscar?
Foi emocionante. É muito lindo terem escolhido um documentário, este ano pela primeira vez na história do Brasil, ainda mais um documentário de uma mulher. Isso é muito importante. As mulheres no poder.
Como surgiu a ideia de filmar e produzir Babenco?
Tudo começou em um leito de hospital. Fiquei com medo de que não houvesse mais tempo de registrar esse homem, a paixão por esse homem. Queria que todo o mundo escutasse as coisas que eu escutava, enxergasse além dos filmes deles, o pensador que ele era, que lutava para se manter vivo. Fazer cinema era algo que mantinha ele vivo. Ele topou, confiava plenamente no meu olhar. Depois, perguntou quando começamos e eu respondi: já comecei. Nos últimos dois anos antes da morte dele, acelerou mais porque a doença voltou e senti a necessidade de filmar o tempo todo.
O filme mostra cenas de vocês no hospital, detalhes que muitos não gostariam de revelar. Você chegou a cogitar não gravar determinados fatos?
Tiveram vários momentos em que não sabia se pegava a câmera, mas às vezes ele pedia. Eu poderia ter feito um filme só sobre os últimos dias dele no hospital, mas não era justo. Tinha que mostrar quem era esse homem, fazer essa volta no tempo. Claro que existiu essa preocupação de cuidado, mas era um pedido dele. Estar filmando, para ele, era também zelar, saber que ele estava trabalhando. Como se o filme fosse um filmar para não morrer jamais.
Nas cenas, além das imagens que você filmou, você optou por colocar imagens de longos do Babenco, bem como de entrevistas antigas, por quê?
No início, não ia colocar uma cena de filme dele. Tinha imagens suficientes. Mas essa inserção veio no decorrer da montagem. O cinema não estava fora da vida dele, a vida e obra dele se misturam. Cada filme tinha muito dele. Aquele momento do documentário tinha algo semelhante dentro de algum filme. Então, as cenas dos filmes são escolhidas, têm um contexto dentro de um roteiro do filme, da cena, da frase. Às vezes, só o áudio dele.
Em algum momento, você chegou a temer que o filme estivesse associado à morte, ainda mais pelo título?
Essa frase - Alguém tem que ouvir o coração e dizer: parou - é dele no filme. E ele partiu assim mesmo, o coração não queria parar, assim aconteceu na vida real. Nunca imaginei que seria um filme de morte. É um filme de amor, de vida. Ele sai de cena fazendo o que mais ama, filmando até o fim. É um retrato de um homem que estava ali.
Na sua opinião, o seu olhar apaixonado que transcende a lente influencia de alguma forma o documentário?
Quando a gente está amando, tem uma paixão, a gente enxerga o outro, a outra, a coisa sempre mais bonita. Adoro deixar as pessoas bonitas na minha fotografia. Gosto de construir e não de destruir. Ele merecia um retrato bonito dele. Jamais iria deixar ele de uma forma que eu não gostasse de vê-lo, precisava enxergar ele ali. Esse é o meu Hector. Não é o Hector que todo mundo conhecia. Ele me pedia: “não se renda a nada, gosto do seu olhar, confio nele. Estou te dando meu passaporte”. Escutei muito ele na minha cabeça, através do meu olhar.
A estreia do filme estava marcada para 9 de abril, antes da pandemia do novo coronavírus. Como você avalia a recepção do público hoje?
Acho que as pessoas estão cansadas ficção, de guerra e estão consumindo documentário como nunca. Elas querem se aproximar do humano. Fora a política do Brasil. O documentário fala de um artista, de um cara que lutou para fazer arte, para fazer filmes, sonhava filmes. Isso é justo e é emocionante. Ele merecia esse respeito e admiração.
Hector decidiu ficar no Brasil “onde a realidade supera a ficção”. Como ele veria o contexto brasileiro atual? Estaria produzindo algum filme?
Ele ficaria muito bravo se eu respondesse por ele (risos). Mas, com certeza, não estaria feliz com tudo isso e estaria fazendo a revolução.
Este é o seu primeiro filme como diretora, está satisfeita?
Dirigi alguns curtas, alguns programas de televisão, mas de fato como filme é o primeiro. Estou contente. Espero que as pessoas assistam no cinema, fiz esse filme para o cinema, com som maravilhoso, é outra atmosfera. Além disso, sempre que vejo, vejo algo novo, algo que me emociona em ver meu próprio filme. Era o filme que eu queria ter feito.