Crítica

Confira a crítica de 'Pacarrete': tratado sobre a desvalia da velhice

Com uma alma intranquila, desesperada por aprovação, Marcélia Cartaxo brilha na personagem-título de Pacarrete, filme de Allan Deberton

Ricardo Daehn
postado em 26/11/2020 19:04 / atualizado em 26/11/2020 19:32
 (crédito: Luiz Alves/ Divulgação)
(crédito: Luiz Alves/ Divulgação)

Se a arte tem um valor inestimável, a sensibilidade da atriz Marcélia Cartaxo o alcança. Vivendo a afrancesada professora e ex-bailarina Pacarrete, enfurnada na cidade de Russas (Ceará), ela dá a vida e a reverência à exuberância do poder do teatro, ao apostar em brilho e glamour difundidos num cotidiano tacanho, incapaz de retribuir esforços de uma ilustre cidadã interiorana.

Pacarrete surge depois de quase 35 anos, desde o estouro de Marcélia Cartaxo como a miserável Macabéa, vista em A hora da estrela (drama sustentado ainda pelo brilho de Fernanda Montenegro e Tamara Taxman). Sob a direção do estreante Allan Deberton, Cartaxo estrela um filme multipremiado no Festival de Gramado (oito troféus, no total). O pano de fundo é a intenção de Pacarrete, tida por lunática pela sociedade local, ofertar um presente nos 200 anos de Russas: apresentar um número de "balê" (como ela pronuncia o seu ballet) nos pretendidos festejos populares organizados pela prefeitura.

Almejando um horário nobre e o palco principal, Pacarrete flerta com a loucura, já que estamos em outros tempos, e pouco valem tesouros que ela detém: fitas VHS, vinis e a atenção a programações de rádio. Obcecada por se provar importante, Pacarrete incorre em destemperos: humilha quem, supostamente, estaria em condição ainda piorada em relação a ela, caso de uma costureira e da aliada doméstica Maria (Soia Lira). Desagradável, em muitos momentos, só tem delicadezas para Miguel (o convincente João Miguel), testemunha da rebeldia da musa contra a imposição de uma cultura local rasa e nada sintonizada com os valores dela.

Pouco a pouco, o roteiro habilidoso do filme deixa o espectador na posição de assimilar o exotismo da protagonista com quê chapliniano. Numa coreografia dolorosa, o cineasta examina os fundamentos que norteiam a perdida professora aguerrida pela arte e que reclama posse até da calçada à frente da casa dela. Solidão e raiva ganharão pilares, à medida em que a personagem se afunda num cruel recolhimento da sociedade. Antes, ela "podia tudo; tinha valor"; mas veio o peso da idade, e...? Tudo fica subentendido no belo filme de Allan Deberton. ###

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