Nas representações neorrealistas que o diretor de cinema Hector Babenco tanto prezava cabiam as emoções desavergonhadas patentes em filmes clássicos. Mesmo sem matizes berrantes de sentimentos extremados, num plácido filme preto e branco, embalado assim para respeitar a carga de memórias do diretor morto em 2016, a companheira de Babenco, e diretora estreante em cinema, Bárbara Paz consegue calcificar a jornada final de Babenco, abatido por parada cardiorrespiratória e que ganha a posteridade de vida e obra, no longa documental Babenco — Alguém tem que ouvir o coração e dizer: parou.
O registro é coroado pela produção associada assinada por Willem Dafoe e Petra Costa (de Democracia em vertigem). A cada mergulho de alma de Paz, também atriz teatral, o marido parece corresponder com vivacidade, ainda que débil. Brota disso, a plena expressão de amor conjugado entre ambos e testemunhado pelo terceiro vértice da relação: os costumeiros espectadores de Babenco. Para se ter ideia, no Brasil, contabilizaram 4,5 milhões, só na ocasião de lançamento do longa Carandiru. Enquanto, na vida real, a filha de Babenco Myra se dedica ao restauro dos filmes do pai; na tela, Bárbara Paz parece restabelecer, com discrição, um alento para o homem que, por 32 anos, batalhou contra saúde
fragilizada.
Falência e renascimentos de seres humanos em contextos sociais desfavoráveis foram uma constante nas produções de cinema de Babenco. No atual longa, Bárbara Paz vai pelo caminho assertivo de que o marido era o que ele representava nas narrativas de muitos dos personagens; só que vivendo em condições financeiras incomparavelmente superiores. Longe de escalas e medições, curiosamente, ele se dizia satisfeito com a mais singela e inteligente observação em torno de quaisquer um dos filmes que conduziu desde 1975.
Sem esgravatar nas contradições do marido, Paz deixa que naturalmente elas aflorem. Descrito como "preocupado e intenso", por um dos maiores nomes do cinema nacional, o fotógrafo Walter Carvalho; Babenco parece alcançar ou acatar um armistício com uma figura folclórica no cinema nacional: mesmo se dizendo amistoso, pelo rigor, ele nunca fora figura unânime ou de lida tranquila pelos pares. Muitas muralhas entretanto pareceram sacolejar, desde a realização do derradeiro filme que ele trouxe: Meu amigo hindu (2015), bastante autorreferente, com um cineasta em busca de transplante de medula óssea, e que experimentava de quimioterapia à adesão de imunoterapia via oral, sempre destilando certa autossuficiência.
Mas e onde estaria a contradição da fortaleza deste homem, respeitado internacionalmente por filmes como Ironweed e O beijo da Mulher Aranha? Numa das vias desvendadas por Paz, "na confiança ilimitada" de contar com sorte de "sobreviver". Entre o deleite do cinéfilo à frente de uma montagem habilidosa em pinçar a genialidade de Babenco, que foi, como dizia, fundido a um cinema "tipificado" como moderador da marginalidade (vide Lúcio Flávio, o passageiro da agonia e Pixote, a lei do mais fraco), o longa de Bárbara Paz investe na brandura, com o olhar de uma cineasta sensível, atenta ao aprendizado com uma espécie de mentor, num ciclo de alento e de confiança.
Sem a casca da ideologia e com a confusão da morfina e de perdas sensoriais, num corpo cru e valoroso, o Babenco que transparece no filme se aproxima muito mais daquele que, no passado, confidenciou um eixo possível da própria jornada: "vivenciar o amor e o sentimento como meta definitiva da vida". Com a câmera em punho, Bárbara Paz o auxiliou nesta conquista. ####
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