Há dois anos, quando completou oito décadas, Martinho da Vila disse que não tinha mais planos de fazer um disco completo após o lançamento de Bandeira de fé. A ideia era fazer uma canção aqui; outra, acolá. Isso porque o artista gosta mesmo é do álbum à moda antiga, físico, com encarte. Mas a música sempre o chama de volta e, na última sexta-feira, ele lançou mais um CD, Rio só vendo a vista, composto por 12 faixas, sendo cinco inéditas e as demais antigas com nova roupagem. “Pensei que fosse fazer só uma ou duas músicas, mas acabei fazendo um disco inteiro. (risos). É porque eu penso numa temática e desenvolvo”, explica o artista em entrevista ao Correio.
O assunto do novo álbum é o Rio de Janeiro, cidade favorita do sambista, que mudou para a capital carioca aos 4 anos. Martinho é natural de Duas Barras, município do estado do Rio de Janeiro. “Sou muito influenciado pelo meio que vivo e estou. Moro aqui, então resolvi fazer um disco sobre o Rio”, explica. A ideia veio a partir da música que dá nome ao material e que, no título, faz um trocadilho sobre ver a vista e vender à vista, que Martinho diz ser um retrato do Rio de Janeiro.
Na faixa título, Martinho canta “o Rio é sempre esplendor, o pôr do sol do Arpoador. Tem macumba para turista, dendê só vendo à vista. É fogo que arde sem ver, ou até mesmo um fuzuê. O Rio às vezes é um grande abacaxi, de São Conrado a São João de Meriti”. Apesar de falar das coisas boas da cidade carioca, a música e o álbum, em geral, também tocam nas questões problemáticas, que estão ainda mais evidentes em meio à pandemia e também no clima eleitoral — a cidade terá segundo turno entre Eduardo Paes (DEM) e Crivella (Republicanos) que disputam a prefeitura do RJ.
O sambista fala, por exemplo, das crianças em situação de rua — algo que o toca bastante quando percorre as ruas do RJ — lembrada em Menina de rua, canção escrita por Martinho e gravada em parceria com a filha Mart’nália. “Quando você escreve uma biografia de alguém, trata da realidade. Eu quis fazer uma biografia musical, então eu tinha que falar de tudo, porque o Rio tem abacaxi que não acaba mais”, completa.
Celebração a Brasília
A cidade maravilhosa ainda está no título de mais uma faixa, O Rio chora, o Rio canta, música escrita por Martinho para concorrer ao samba-enredo de 2020, quando a Vila Isabel cantou os 60 anos de Brasília. A música não foi a escolhida para a avenida. Mas, o sambista achou por bem lançada. Apesar de a canção levar o nome da cidade carioca, a história da capital federal mistura-se com a da antiga capital na letra do samba: “Lá no Planalto Central em pleno coração do Brasil. Ergue-se Brasília, a moderna capital, 60, 21 de abril. Brilha pela linha arquitetônica. É tão linda e pomposa cidade. Antes vista como obra faraônica é Patrimônio Cultural da Humanidade”.
“Dei uma estudada para escrever sobre Brasília. Mas, eu queria falar um pouco de Brasília e um pouco do Rio de Janeiro. Pensei: ‘vou botar o Rio nessa parada de Brasília, porque aqui foi a capital’. Na época, a cidade ficou triste e muita gente não conhece esse lance. Então, fui fazendo, falando sobre essa moderna capital, antes vista como obra faraônica”, responde, emendando a letra da música. Ele diz que pretende, em 2021, poder cantar a música no quadradinho, num eventual show no momento pós-pandemia. Questionado se tem acompanhado a força do samba e do pagode de Brasília, ele diz: “Acompanho sempre o que está acontecendo. Brasília, que já foi do rock, agora está em outros caminhos”.
Entre as outras inéditas, Minha preta, minha branca, samba que fez em homenagem à esposa Cleo; O caveira, criada a partir de uma história contada pela mãe e gravada em parceria com Verônica Sabino; e Umbanda nossa, faixa que nasceu após o período no teatro com o espetáculo Concerto negro, inspirado no cancioneiro afro-brasileiro idealizado pelo maestro Leonardo Bruno. Completam o álbum as regravações de Vila Isabel anos 30; Na ginga do amor (em parceria com Moacyr Luz); Você, eu e a orgia (samba feito para Beth Carvalho); Pensando bem (gravada com Verônica Sabino); Eterna paz (uma versão só com voz e cavaquinho); e Assim não Zambi (com participação de Maíra Freitas). Além de Mart’nália e Maíra, cinco filhos de Martinho participam no coro de três quatro faixas.
À moda antiga
Mesmo que seja um disco digital, Martinho fez questão que Rio só vendo a vista tivesse uma capa diferenciada. Ele convidou amigos cartunistas para que fizessem ilustrações de cada faixa. Uma delas foi feita por Lan, no provável último trabalho antes de morrer no último dia 5, aos 95 anos, e acabou se tornando na capa do álbum. Na imagem, duas mulheres observam a Baía de Guanabara. “O Lan sempre retratou o Rio muito bem. Então, pedi uma caricatura para ele. Ele fez e logo depois descansou”, recorda.
Tecnologia, inclusive, não é a onda do sambista. Ele conta que tem preferido não fazer lives. “Me emociono no palco. Essa coisa de live é meio sem graça. Já fiz, mas poucas. Isso não dá retorno. No show é imediato. As pessoas reagem. Isso é o que me interessa”, define. Para Martinho, o momento de pandemia tem sido de ver uma situação de muita tristeza, tanto no Rio, quanto no mundo. “Nunca houve uma pandemia como essa. Isso está se prolongando muito. Eu sinto muita falta de viajar, eu gosto, estava acostumado. Depois tem o palco, a música. Mas, eu sei que a vida vai melhorar”, emenda, novamente, cantando quase numa prece, para que a pandemia de covid-19 passe.
Rio só vendo a vista
De Martinho da Vila. Sony Music, 12 faixas. Disponível nas plataformas digitais.
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