Um dos expoentes da cultura do país, o cantor, arranjador, pianista e acordeonista e acreano João Donato, em 70 anos de carreira construiu uma das mais relevantes obras no universo da MPB, registrada em discografia que inclui 35 títulos. Nesses trabalhos, reuniu inumeráveis canções nas quais promove a fusão de ritmos brasileiros com elementos do jazz, música latina e afro-cubano, fruto do seu envolvimento com esses estilos no período em que radicou-se nos Estados Unidos, na primeira metade da década de 1950.
Parceiro de outros mestres do ofício como Caetano Veloso, Gilberto Gil, Chico Buarque, Martinho da Vila, Aldir Blanc, Ronaldo Bastos e Paulo César Pinheiro, João divide composições também com o irmão Lysias Ênio e com os roqueiros Arnaldo Antunes e Cazuza. Sempre disposto a viver novas experiências sonoras, há quatro anos se juntou a jovens instrumentistas paulistanos das bandas Bixiga 90 e Metá Metá e do grupo Otis Trio, além dos bateristas Curumim e Guilherme Kastrup para gravar o CD Donato Elétrico. Com o disco, produzido por Ronaldo Evangelista, retomou a sonoridade de meados dos anos 1970, marcada pelo uso do piano elétrico.
Agora, o Donato Elétrico está sendo relançado no formato de LP, com capa e encarte que receberam novo tratamento gráfico, capa Gatefold para armazenar o vinil duplo, com 10 faixas. O primeiro traz no Lado A Here’s SJD Urbano; e no Lado B Frequência de onda, Espalhado e Tartaruga. Já no segundo há o registro de Samba do marreco, Combustão espontânea e Resort, no Lado C; e Xaxado de Hércules e G8, no Lado D. O relançamento inaugura nova fase da gravadora Sesc São Paulo.
Em entrevista exclusiva ao Correio, João Donato fala detalhadamente sobre esse projeto, diz como ocupou o tempo na longa quarentena e revela que está produzindo dois novos CDs: um com a participação das cantoras Céu, Mariana Aydar e Tulipa Ruiz e o outro ao lado do filho Donatinho.
Entrevista// João Donato
O Donato Elétrico, lançado em CD há quatro anos, tinha como proposta promover a retomada da sonoridade de trabalhos seus dos anos 1970, marcado pelo uso do piano elétrico. O que ele representou em sua obra?
Foi uma experiência que resultou em um álbum bastante apreciado pelo público e pela crítica, recebeu inclusive uma indicação ao Latin Grammy. A música está sempre em movimento e a gente procura introduzir uma novidade em cada trabalho que se compromete a fazer. Este foi mais um caminho, mais uma busca, mais uma pesquisa, como um laboratório que a gente entra e procura novas receitas, novas fórmulas, novos rumos, novas tentativas. Achei que foi muito válida esta experiência do Elétrico, com sintetizadores e teclados, assim como foi o A Bad Donato, uma busca de direção, de rumo. Tanto o Bad, no início dos anos 1970, quanto o Elétrico, em 2016, expandiram os espaços para novas experiências, que abriram janelas para novas sonoridades, desenvolvidas por mim e por quem escuta os álbuns. São possibilidades infinitas fruto da tecnologia. Eu, que gravei uma música pela primeira vez em 78 rpm, aos 15 anos, fui passando pelo long play a 33 rotações por minuto, fita cassete, disc laser, MD, CD, DVD, agora esse modelo digital de escutar música pela internet, acredito que a tecnologia abriu novos horizontes, novas possibilidades de sonoridade para instrumentos que quase tocam sozinhos. Produzem sonoridades que você não imagina que vai ter e acabam surpreendendo. Apesar de não largar o meu velho piano acústico, não deixo de continuar experimentando.
Como foi a experiência de gravar esse disco com jovens músicos paulistanos?
A turma de músicos de São Paulo sempre foi presente na minha música, desde o tempo em que eu era adolescente e pegava um ônibus da Viação Cometa ou da Viação Brasileira — eu não tinha dinheiro para pagar passagem de avião — e ia para SP com Milton Banana só para escutar os músicos de lá: Maciel do trombone, Salazar, Robledo, Bolão, Betinho guitarra, Rubinho Barsotti Chu viana, Azeitona, Sabá do contrabaixo. A gente saía do Rio só para ouvir os caras tocarem. Tem uma energia diferente em SP, uma coisa boa e a música reflete isso.O Bixiga 70 transmite essa vibração positiva no tocar. Eu toco com gente de todas as gerações há muito tempo. Comecei jovem com os adultos, em 1949 eu era o garoto tocando com os adultos na Rádio Guanabara. ara ir tocar no lugar do Chiquinho. Eu fui lá. Comecei a tocar nessa época com os mais adultos. Agora eu sou um dos adultos tocando com os jovens. Eu era um adolescente, né? O tempo foi passando, agora eu tô com 86 anos, 70 anos depois, que fiz a minha primeira gravação. A musicalidade é a mesma. As pessoas são as mesmas em todo lugar do mundo, já dizia o Tom Jobim. Os tempos passam e o sentimento permanece. Agora, quem tem talento, vai pra frente. Porque as possibilidades são infinitas, mas a música tem que fazer bem. Música não é para sofrer, é para aplacar os sofrimentos.
Lançar o Donato Elétrico em vinil lhe faz lembrar do começo da carreira?
Tenho lembranças deliciosas de quando eu ainda nem era músico profissional. A gente deixava de almoçar pra comprar um disco. Na transição do 78 rpm para o LP era muito bom, aquela sensação de pegar o disco e escutar várias faixas por lado. Depois, entraram as outras tecnologias, e o vinil foi sendo deixado pra lá. Só que o mercado mudou e quem não se desfez dos seus LPs está aproveitando. Não é apenas uma moda o retorno do LP. Foi muito bem pensado, porque a qualidade da música é muito superior à do digital. Agora tá voltando o cassete também, eu tenho mais de 1.600 fitas que estavam no fundo da gaveta e a Ivone (mulher de João) trouxe à tona com as pesquisas para o Instituto João Donato que ela criou para cuidar do meu acervo.
Como estava sua agenda antes do início da pandemia?
Eu estava com o ano de 2020 todo agendado. Tinha uma turnê no Japão com Menescal, Carlos Lyra e Marcos Valle e umas gravações em Tóquio com Donatinho; uma semana de festival na Unicamp com workshop, shows com meu trio e com a orquestra; também tinha shows com a Orquestra Jazz Sinfônica em São Paulo e em Campos do Jordão, shows diversos em São Paulo com Donatinho, Raul de Souza; no Clube do Choro em Brasília; e começaria a gravar ainda no primeiro semestre um disco para a Natura Musical. Os compromissos em sua maioria foram adiados, alguns já estão sendo remarcados.
Como tem ocupado o tempo durante a interminável quarentena?
Fiz algumas lives, tentando me acostumar a tocar piano para uma câmera de celular, encerrar a música e não escutar nenhum aplauso. Aquilo foi estranho, mas agora está fácil. Gravei com meu guitarrista italiano Eddy Palermo, cada um na sua casa. Gravei uma faixa para o disco do Urca Bossa Jazz, um conjunto aqui do Rio. No último fim de semana fiz um show na Casa de Francisca, com transmissão fechada para Brasil, Japão, EUA, Europa, e foi uma hora e meia que passou deliciosamente na boa companhia de Arismar do Espírito Santo no contrabaixo, Décio 7 na bateria e Doug Antunes no trombone (do Bixiga 70) e o meu filho Donatinho no teclado. Em outubro fiz show sem público, também, com minha banda completa no Rio Montreux Jazz Festival, com transmissão aberta para o mundo todo. São novas experiências que a gente vive e isso serve para a gente repensar. jogando fora coisas inúteis, parando de consumir o supérfluo, descobrindo que se pode viver com menos, muito menos. Dá tempo para olhar as anotações, os pedacinhos de música e de ideias para novos arranjos musicais. A gente vivia viajando de lá para cá e o tempo que ficava em casa era só para descansar. Na quarentena, deu tempo para tudo, até para encontrar música muito boa escrita no inverno dos Estados Unidos, quando eu morei por lá.
Tem algum novo projeto em desenvolvimento?
Estou fazendo para a Natura Musical um disco de inéditas com letras e intérpretes da cena contemporânea: Tulipa Ruiz, Céu, Mariana Aydar, Ronaldo Evangelista, que também é o produtor do disco, ele que produziu o Donato Elétrico. Também já comecei a produzir com o Donatinho o nosso segundo disco, agora mais na minha onda.O primeiro era mais pop e ganhou na categoria Melhor Disco Eletrônico do Prêmio da Música Brasileira. Na sequência vou me internar com Jards Macalé em um estúdio em Araras, serra fluminense, para um outro disco encomendado pela nova gravadora Rocinante, em que criaremos e gravar novas canções com a inspiração da cachoeira, da mata, do canto dos pássaros, do ar puro.
Qual é sua visão do momento vivido pela cultura brasileira atualmente?
Estaria tudo muito bem, apesar da pandemia, se não fosse a falta de investimento na música, nas artes, na cultura. As pessoas criativas continuam criativas o tempo todo, os horizontes são infinitos. Mas não se pode fazer música com os bolsos furados (rindo).
Donato Elétrico
Álbum duplo em vinil com 10 faixas. Lançamento da gravadora Sesc São Paulo.
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