Em coprodução com duas empresas da capital, a Kocria Audiovisual e a Corriola Filmes, o cineasta Cássio Pereira dos Santos, formado pela Universidade de Brasília, tem aberto caminhos relevantes para a projeção do longa Valentina que despontou nos Estados Unidos, no Outfest Los Angeles e no Outshine (em Fort Lauderdale e Miami), além de ter sido premiado pelo júri internacional da 44ª Mostra de São Paulo. Estrela do filme, a jovem transexual Thiessa Woinbackk chamou a atenção dos jurados, o que resultou numa menção honrosa. No Outfest, também havia sido premiada melhor atriz. Ela ressalta que o teor do longa alcança as relações familiares. No circuito de eventos on-line, o filme cria expectativas sempre nos festivais virtuais. "Precisamos lembrar que as pessoas estão em casa, então é importante notar como tem sido a relação das pessoas trans com a família, neste momento", observa a atriz Thiessa, que é destaque com constantes ações no YouTube.
Diretor do filme, Cássio Pereira diz ter apostado em emoções recorrentes, desde os primeiros curtas. "São temas tratados pelo viés dos direitos humanos, como o direito igualitário à educação, que Valentina busca durante o enredo. Mostrar um filme protagonizado pela Thiessa no exterior é uma maneira de dar mais visibilidade às pessoas trans, que não conseguem concluir os estudos por causa da transfobia nas escolas. Infelizmente a evasão escolar de trans e travestis é bem real", ressalta o cineasta.
Com uma rede de financiamento coletivo para lançamento de Valentina, no pós-pandemia, o diretor conta que deu ênfase à ideia que fortalece pessoas trans: "A sensação de pertencimento a uma turma, entre familiares e amigos, ajuda a seguir adiante". No filme, rodado nas mineiras Uberlândia e Estrela do Sul, o brasiliense Rômulo Braga e a atriz Guta Stresser interpretam os pais da menina trans.
Valentina será uma das atrações do 28º Fest Mix Brasil que, de graça, tem programação descrita em mixbrasil.org.br e sessões pelas plataformas sesc.digital.home, innsaei.tv e spcineplay.com.br. Estendido até 22 de novembro, o festival traz 98 filmes de 24 nacionalidades, além de obras assinadas por diretores como Sérgio Borges, Caru Alves de Souza e o goiano Daniel Nolasco (Vento seco). Produções exibidas em Berlim, Sundance, Cannes e Toronto ocupam muito da programação, com fitas de François Ozon e Mona Fastvold, entre outros. Destaques para I can carry you with me (México), de Heidei Ewing, vencedor do prêmio de público em Sundance, e Língia franca, de Isabel Sandoval, vencedor do Queer Lobo 2020.
Realidade opressora
A partir da noção de que as "opressões de classe, cor e gênero são ainda muito desiguais", quando está em pauta a realidade de travestis e transexuais, nas palavras do diretor Matheus Farias, o curta Inabitável (feito em parceria com Enock Cavalho) se concentra em destacar o Brasil como "um lugar que dá medo e ameaça muita gente em diferentes níveis", como reforça o cineasta. "Inabitável tenta dar conta de um estado de Brasil. Um país que está adoecido, violento, e dentro do qual há muitas Marilenes e muitas Robertas. O que tentamos mostrar no curta-metragem é lançar a pergunta: 'o que está guardado para o futuro dessas pessoas?'", explica Enock. No último Festival de Gramado, o curta arrebatou prêmios de melhor roteiro e atriz, e, pelo júri da crítica, foi tido como o melhor.
Apoiado por fundo de estímulo ao cinema pernambucano, Inabitável, por vezes, exemplifica o descaso de muitos com uma temática forte. Enviado para o diretor de um festival alemão de curtas internacionais, o profissional não disfarçou o preconceito: disse que só pela sinopse não se via mobilizado, pois, pelo que ouviu Matheus, os filmes brasileiros da atualidade 'só tratavam de questões de transexualidade, negritude e ativismo'. Chocada, a dupla nem pensou em insistir. "Talvez ele não saiba que o Brasil é o país que mais mata pessoas LGBTs no mundo, que isso faz parte da nossa realidade, e que os filmes vão continuar abordando esse tema, independentemente do interesse dele. Há uma clara falta de empatia circulando no mundo", observa Matheus Farias, com carga atônita.
Desde a escrita do roteiro de Inabitável, a dupla consultou amigas trans e travestis em relação ao conteúdo do roteiro. “Acho que filmes são também exercícios de alteridade, observações do mundo e das pessoas do mundo, não necessariamente diálogos imediatos com a realidade do roteirista ou diretor envolvido numa criação”, comenta Matheus Farias. Mesmo assim, acha que o mínimo a se fazer nesses casos é consultar (preferencialmente, sob cachê), conversar, pedir opiniões, colocar roteiro e filme à prova para que envolvidos apontem (ou não) questões que podem ser problemáticas.
Discussão fundamentada
Dona de vários projetos no universo LGBT, a diretora Tatiana Issa circulou o Brasil em festivais como o mais recente, em Gramado, com um projeto em torno da realidade trans: o curta-metragem Dominique, desenvolvido ao lado do colega Guto Barra. O filme já circulou em festivais na Itália, Alemanha e França. "É uma história muito humana: há a mãe sofrida e amorosa, típica, que passou pelo abandono, mas o filme trata de profundas emoções e da aceitação. Depois de sofrer violência policial, e com duas outras irmãs trans na Europa, Dominique passa a cuidar desta mãe, na Ilhota de Cotijuba (Pará)", explica Tatiana, ao Correio, de Nova York, em que mora há 20 anos.
Tatiana Issa, há anos investe no audiovisual, a fim de abrir a mentalidade "tacanha e reduzida", como ela reforça, sob a meta de frear brechas de preconceito. "Abraçar um filho trans corta o ciclo vicioso e que se repete: expulso da escola, de casa, das instituições como a Igreja, as pessoas são jogadas na prostituição, por exemplo", explica. A trans precisa de visibilidade e que extraia elementos pejorativos do passado. "Vinha a carga negativa, associada a rótulos de sujeira, a tratamentos animalescos", reforça Tatiana Issa.
Falar mais ajuda as famílias, pelo que nota a engajada diretora. "Hoje, eu nem presto atenção, se há preconceito: o amor é algo tão forte", comenta a diretora, eternamente conhecida pela direção do documentário Dzi Croquettes (2009), que fez carreira internacional, em festivais de mais de 60 países.
Naquele longa, exibido no Moma e com críticas no NY Times e na Variety, ela saboreou a influência em uma geração de espectadores, ao falar do pai gay e do apreço da educação, num meio em que foi criada junto a 13 homens (do grupo Dzi Croquettes), constantemente vestidos como mulheres.
Uma série na HBO, em exibição, chamada Fora do armário; um projeto audiovisual sobre o tratamento da mídia nas questões de transexuais, outro (em fase de edição), sobre assassinatos de trans no Brasil, todos criados por Tatiana Issa, serão somados a BR Trans (filme inédito, com base em peça teatral de Silvero Pereira), outra ferramenta dela na cruzada contra a derrubadas de preconceitos.
Entrevista// Nathalya Brum e Augusto Borges
A criação de vocês em Brasília tem afunilamento nos tópicos LGBTQI+. Quais as produções a caminho e qual zelo têm a 404 Produções, ao abordar o amor sem preconceitos?
Nathalya — Somos uma produtora e, como tal, damos preferência para projetos que envolvem não só o tema, numa equipe formada por profissionais LGBTQI+. Acreditamos que a arte têm a capacidade de falar ao poder e é esse nosso principal foco. Além do curta Wander Vi (selecionado para o 48º Festival de Gramado), estamos finalizando um curta-metragem chamado Destino: Mercadoria. Trata do tráfico sexual internacional de mulheres. Outro projeto (junto à editora Pergunta Fixar) é o do lançamento do livro Submarino, onde a história gira em torno de um casal gay. Sempre buscamos uma abordagem mais próxima da realidade, que não se limite à “tragédia”, como muitas obras retratam.
O público consumidor é restritivo? Vocês se veem perseguidos, ao trabalhar com segmentos específicos?
Augusto — É restritivo, em termos, sim. Mas, com o passar dos tempos, acredito que o mais pessoas estão consumindo conteúdo LGBTQI+, em várias áreas artísticas — o que é ótimo. A perseguição acontece, mas é majoritariamente governamental, levando em conta a censura que vem acontecendo, que não rolava, há dois, três, no outro governo.
Como percebe o Brasil, quando comparado a produções mundiais de temática semelhante?
Nathalya — No Brasil, o cinema apesar de ter grandes profissionais, ainda caminha a passos lentos: faltam investimentos e sobram ameaças. Enquanto em outros países, existe um número maior de produções do mesmo tema, embora limitadas na forma abordagem. Existe uma deficiência grande no mercado, onde obras LGBTQI+ são produzidas mas não são consumidas, por falta de distribuição e de investimento. É preciso criar uma forma de acesso à informação e aos meios de produção, para pessoas periféricas e LGBTQI+, que têm suas histórias para contar e precisam de um espaço. É isso que tentamos mudar.
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