As correspondências eram uma paixão da escritora Clarice Lispector, além de serem a alternativa que a ucraniana naturalizada brasileira encontrava de se comunicar com familiares, amigos e colegas escritores enquanto se deslocava pelo mundo. Ela nasceu na Ucrânia, morou em diferentes cidades brasileiras — Maceió, Recife, Rio de Janeiro e Belém — e também rodou o mundo ao lado do marido o embaixador Maury Gurgel Valente.
As cartas de Clarice vieram a público em formato editorial pela primeira vez em 2001 em Cartas perto do coração, obra organizada por Fernando Sabino e publicada pela editora Record que mostrava a troca de correspondência entre os autores. No ano seguinte, 25 anos depois da morte da escritora, foi lançado pela editora Rocco Correspondências, composto por 129 cartas escritas pela autora ou destinadas a ela dos anos 1940 até um pouco antes da morte em 1977. Em 2007 mais missivas vieram à tona na publicação Minhas queridas, que apresentou 120 cartas inéditas escritas entre 1940 e 1957.
Neste ano, quando a escritora completaria 100 anos em dezembro, a Rocco lançou Todas as cartas, obra que reúne quase 300 correspondências da autora escritas ao longo da vida entre 1940 e 1970 separadas por década, com 510 notas da biografa Teresa Montero, que contextualizam o material no tempo, no espaço e nas inúmeras citações a personalidades e referências culturais dos conteúdos. O acervo tem como objetivo nortear quem foi Clarice, escritora que nunca gostou de justificar o próprio trabalho e conhecida por ter sido extremamente reservada.
O conteúdo, formado por 864 páginas, traz um conjunto de correspondências inéditas endereçadas aos amigos escritores João Cabral de Melo Neto (que incluem menção a peça teatral O coro dos anjos), Rubem Braga, Lêdo Ivo, Otto Lara Resende, Paulo Mendes Campos, Nélida Piñon, Lygia Fagundes Telles (num bilhete a frente do seu tempo em que fala sobre o papel das mulheres num mundo literário dominado por homens), Natércia Freire e Mário de Andrade.
Também há um conteúdo mais íntimo nunca antes publicado, sendo 16 cartas que mostram as conversas de Clarice com as irmãs Elisa Lispector e Tania Kaufmann, mais do que confidentes da autora, influenciadores no gosto dela incutindo o hábito de ir ao cinema e até a leitura de Simone de Beauvoir.
Ao Correio, o editor Pedro Karp Vasquez, responsável pelo posfácio de Todas as cartas, fala sobre a publicação, resultado de uma longa pesquisa, e analisa a importância do conteúdo admirado por fãs da escritora e constantemente estudado pelos acadêmicos.
Todas as cartas — Clarice Lispector
De Clarice Lispector. Posfácio de Pedro Karp Vasquez. Prefácio e notas de Teresa Montero. Pesquisa textual e transcrição das cartas de Larissa Vaz. Editora Rocco, 864 páginas. Preço: R$ 199,90.
» Entrevista // Pedro Karp Vasquez
Há quanto tempo vocês já trabalhavam em Todas as cartas?
O trabalho levou pouco mais de dois anos, pois havia dificuldade em localizar as correspondências enviadas por Clarice em mãos dos destinatários (ou de seus herdeiros, na maior parte dos casos) ou em instituições públicas e particulares. Isso porque Clarice não guardava cópias das suas cartas. A pesquisa foi realizada com muito critério por Larissa Vaz, e teve até a participação de Paulo Gurgel Valente (filho da escritora e curador do legado literário), que também ajudou a localizar algumas missivas importantes, como as do poeta João Cabral de Melo Neto, por exemplo.
Entre os conteúdos inéditos, quais cartas mais surpreenderam de terem sido encontradas?
Cartas de duas naturezas: as íntimas, enviadas às irmãs, ao filho mais novo, ao futuro marido (o embaixador Maury Gurgel Valente) quando ainda era um simples namorado, e a outros membros da família; e as cartas de cunho literário, enviadas aos amigos escritores, como o já citado João Cabral de Melo Neto, Rubem Braga, Otto Lara Resende, Fernando Sabino e Lúcio Cardoso. Esses dois conjuntos combinados oferecem um perfil completo de Clarice Lispector, como escritora e como ser humano.
O que as descobertas e a publicação dessas novas cartas acrescentam em relação à obra de
Clarice Lispector?
Clarice não gostava de dar entrevistas e, muito menos, de explicar ou justificar o próprio trabalho, ao contrário de outros escritores que gostam de comentar as próprias motivações. Em toda sua vida ela só deu três grandes entrevistas, para O Pasquim, em 1974, para o Museu da Imagem e do Som do Rio, em 1976, e, no ano de sua morte, 1977, para a TV Cultura (exigindo do entrevistador, Júlio Lerner a promessa de divulgá-la somente após seu falecimento). Tudo isso faz com que as informações acerca das suas reais intenções ao escrever, encontradas nas correspondências com outros escritores e reproduzidas em Todas as cartas, sejam de extrema valia para os estudiosos e pesquisadores, permitindo em certos casos até mesmo a reavaliação de determinados comentários publicados em teses e outros estudos acadêmicos.
As cartas escritas por Clarice Lispector sempre despertam muita curiosidade dos leitores. A que atribui isso?
Acredito que isso se deve ao fato de que tudo aquilo que Clarice escreve é muito verdadeiro e absolutamente sincero. Ela não faz pose nem se esconde atrás de uma persona pública cuidadosamente construída, como fizeram (e ainda fazem) alguns escritores preocupados na construção do próprio mito. Clarice é o que é, com absoluta sinceridade. Em certos casos — em particular nas crônicas que escrevia para o Jornal do Brasil —, ela chegou inclusive a admitir limitações e espantos diante de alguns dos desafios que a vida oferece a todos nós. Assim, os leitores acabam sempre encontrando algo que lhes fala ao coração nos seus livros.
O material também conta com ricas notas de Teresa Montero. Qual é a importância desse outro trabalho de pesquisa?
A colaboração de Teresa Montero, biógrafa de Clarice, foi fundamental para a realização de Todas as cartas, pois as 510 notas que ela redigiu para o livro iluminam todos os detalhes carentes de maior explicação, como a identidade dos destinatários de suas cartas (quem eram e qual o papel que eles desempenharam na vida de Clarice), assim como informações acerca das cidades em que ela morou e dos países que visitou no período em que residiu no exterior na qualidade de esposa do diplomata Maury Gurgel Valente. Todas as cartas vem confirmar o que os pesquisadores já sabiam desde a edição das coletâneas Minhas queridas e Correspondências: Teresa Montero é a maior especialista na produção epistolar de Clarice Lispector.
Vocês pretendem fazer mais lançamentos em comemoração ao centenário de Clarice?
Por incrível que pareça, sim. Até o final do ano toda a obra clariceana (compreendendo 18 títulos), será reeditada, com projeto gráfico de Victor Burton, capas reproduzindo quadros pintados pela própria Clarice e posfácios especialmente encomendados para a ocasião e assinados por estudiosos de renome ou grandes nomes da literatura brasileira, como Nélida Piñon, Marina Colasanti e Rosiska Darcy de Oliveira. Contudo, em virtude dos impedimentos causados pela pandemia do Coronavírus, dois livros programados para o corrente ano de 2020 deverão sair no ano que vem: a reedição (atualizada e muito ampliada) da biografia Eu sou uma pergunta, escrita por Teresa Montero, e um livro sobre a produção do filme baseado em A paixão segundo G. H., editado pela roteirista Melina Dalboni e pelo cineasta Luiz Fernando Carvalho.
Clarice Lispector se tornou numa autora pop. O que acha que ela pensaria disso?
Tenho certeza de que ela detestaria. Em nenhuma hipótese ela faria uma dessas “lives” tão em moda atualmente, assim como não teria conta em nenhuma rede social, pois ela sempre foi uma pessoa reservada e muito ciosa da própria privacidade. Clarice admirava enormemente o poeta Carlos Drummond de Andrade, seu colega como cronista no Jornal do Brasil, também morador de Copacabana (mas no extremo oposto ao de Clarice) e tão discreto e reservado quanto ela. Dizem que ao ser reconhecido Drummond chegou a negar mais de uma vez ser ele mesmo, alegando: “Mas eu sei que sou muito parecido com ele, pois não é a primeira vez que me confundem com ele”. O tipo de argumento que Clarice poderia muito bem usar...
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