A editora brasiliense Estrondo!, fundada em 2018 e dedicada exclusivamente à edição de fotolivros de autoria feminina, lança, nesta quinta-feira (15/10), três fotolivros de fotógrafas locais selecionadas por meio de uma convocatória. Ao todo, dez projetos foram escolhidos, sendo que, em março, os primeiros três foram publicados e os demais serão divulgados até o fim do ano.
Os livros têm tiragem limitada a 100 exemplares cada e podem ser adquiridos por R$ 35 reais, pelo e-mail contato@estrondo.com.br ou pelo Instagram da editora. Esta segunda edição do edital foi patrocinada com recursos do Fundo de Apoio à Cultura (FAC) do Distrito Federal. Cada autora ganhou, também, um prêmio em forma de pecúnia no valor de mil reais.
Ainda pelo Instagram da editora, será transmitida, às 17h desta quinta-feira, a live de lançamento. Em entrevista ao Correio, as autoras falaram sobre as publicações e processos criativos.
Boca d’alma, de Lua Cavalcante
Moldes ortodônticos de gesso, linhas, exames médicos e papéis transparentes queimados são alguns dos objetos que a fotógrafa Lua Cavalcante utiliza para compor as fotografias e autorretratos. “É como se aquele papel fosse a minha pele também, de algum modo, então eu vou brincando com isso”, compara Lua, que teve uma doença congênita rara chamada Síndrome das Bridas Amnióticas, na qual um tecido semelhante ao da bolsa amniótica se enrola em partes do feto, causando má formação.
Lua teve que amputar uma perna e passar por uma série de cirurgias de reconstrução facial, tanto de correção estética quanto para poder falar, respirar e comer normalmente. “O livro é uma narrativa construída em uma reflexão minha sobre essas fotos e sobre o meu próprio corpo, e sobre os processos que eu passei sendo uma pessoa com deficiência, porque eu acho que essa é uma parte bem importante sobre mim”, explica a artista, formada em fotografia pelo IESB.
A partir de um material, uma cor, um estado de espírito ou até uma crise, Lua se debruça sobre estes objetos para compor os arranjos. Em seguida, trabalha a iluminação e clica. Para o livro, a artista selecionou, organizou e reuniu as imagens em três diferentes ensaios, que seguem uma linha de raciocínio, formando um arco narrativo. “Essas cirurgias eram vividas por mim de modo muito inconsciente. Eu meio que me desligava para poder passar por isso, porque eram processos muito traumáticos”, conta. “Essas fotos são como se eu resolvesse retomar esses processos, essa trajetória de modificações corporais, feitas por outros, mas que agora eu tento refazer por mim mesma. É como se eu pegasse a chave disso para mim, tentando resolver tudo o que ficou aberto”, esclarece.
Para ela, o processo, embora não seja uma terapia, tem caráter terapêutico, uma vez que, ao refletir sobre si mesma, ocorre algum tipo de cura. “Enquanto reunia o material, ia recebendo essas falas que têm no livro, ouvindo de mim mesma essas frases. É uma conversa comigo sobre esses processos cirúrgicos, muito carnais e viscerais, que eu passei e que eu recrio”.
Carto-Tipo(Grafias) da transgressão, de Andresa Augstroze
Cada vez que alguém pergunta para a fotógrafa Andresa Augstroze de onde ela é, ela responde de uma maneira diferente. “Eu viajo demais. Durante minha vida, morei em vários lugares e passei muito pouco tempo na minha cidade natal, então eu não tenho um lugar ao qual minha identidade pertença. É uma identidade fluída", conta a artista, que, nos últimos anos, vive entre Goiânia (Goiás) e Brasília. “É um deslocamento constante e repetitivo, então, em vez de só viajar, ser apenas uma passageira, eu transformo esse espaço e esse tempo em um espaço de ateliê”, conclui.
Esse processo criativo de ateliê itinerante está bem representado no livro. Se por um lado o prefixo “carto” (de cartografia), do título, está relacionado ao registro das viagens, o significado do livro se completa com a palavra “tipo” (de tipografia), em que a palavra escrita se mistura ao pictórico para atravessar fronteiras entre as linguagens. “Eu tento caminhar entre e bordear as inespecificidades da fotografia, ou seja, aquilo que não é próprio da fotografia, o que a fotografia compartilha com outros campos do conhecimento, e, principalmente, no meu trabalho, com a literatura e a palavra”, explica.
O livro começa com fotografias das fronteiras geográficas atravessadas por Andresa e vai, aos poucos, se misturando às palavras, culminando em um grande texto. “Eu tentei trilhar um caminho de descoberta em um lugar que se inicia somente na fotografia e que termina numa junção da fotografia com a palavra, que seria o encontro”, reflete. “A viagem sempre possibilita que você encontre pessoas e situações diferentes daquelas que você veria cotidianamente. A viagem é sempre a possibilidade da palavra, e é sempre, também, a possibilidade da transgressão. Porque a palavra, para mim, pelo menos, nada mais é do que transgredir e se comunicar. A comunicação é uma transgressão”, conclui.
Relação-Ruína, de Isabella Atayde
A relações públicas e produtora cultural Isabella Atayde, formada na área, começou a escrever ainda muito jovem. Os escritos, ela diz, destinavam-se somente aos seus guardados, que volta e meia ela revisitava. No fim da adolescência, prestes a entrar para a faculdade, começou a fotografar quando passou a viajar mais e a ter mais liberdade. As fotografias eram “só para testar olhar”.
Esse olhar, nos últimos anos, começou a se voltar para as ruínas de paisagens, coisas e objetos que ela registra durante as viagens. “Eu fico muito instigada com o abandono. Meu olhar sempre cai no abandono. Pode ser o abandono de pessoas, que eu não consigo fotografar, como muitos fotógrafos fazem, como forma de denúncia. Então, eu caí mais para o lado das paisagens e objetos”, descreve.
Assim, viagens, imagens e palavras se misturam no primeiro livro que ela, até então, não pensava em fazer. O edital da Estrondo! funcionou como um gatilho. “Sinto que esse livro foi como um estímulo para continuar escrevendo, registrando, não com a intenção de ter algum reconhecimento, mas no sentido de colocar isso para fora, continuar insistindo no meu olhar e na sensibilidade que esse olhar provoca. ”, conta. “Esse projeto foi bacana porque deu oportunidade para várias mulheres que tinham esse conteúdo represado, porque, certamente, a quantidade de obras publicadas é infinitamente inferior à quantidade de obras produzidas”.
O interesse pelas ruínas não é somente sociológico, mas também filosófico e metafórico. “Eu vejo muita ruína no dia a dia, no nosso dia a dia enquanto sociedade. A ruína é diária, e a gente está vivendo na ruína e não sabe, com essa falta de perspectiva, de desejos, de ambição e planejamento, de saber onde quer chegar “, considera. “Relação-ruína, para mim, é isso: o efeito que as relações provocam na gente, efeitos construtivos e destrutivos, que sempre causam arruinamentos, porque, para conseguir se relacionar com qualquer coisa - pessoas, nosso trabalho, com nós mesmos - a gente precisa arruinar alguma coisa dentro nós, para poder crescer outra coisa e ela poder se diluir, se dissipar, se transformar e se ressignificar”.
*Estagiário sob a supervisão de Roberta Pinheiro