Traços eternos de Quino

Cartunista argentino Joaquín Salvador Lavado morre, aos 88 anos, deixando legado de uma arte politizada

Em 29 de setembro de 1964, nas páginas da revista Primera Plana, a menina de 6 anos, filha de uma família de classe média argentina, era apresentada oficialmente pela primeira vez aos leitores. A cumplicidade entre criador e criatura era tamanha que, um dia depois de comemorar o aniversário de Mafalda, o cartunista argentino Joaquín Salvador Lavado, mais conhecido como Quino, morreu aos 88 anos. A notícia foi confirmada pelo editor do artista, Daniel Divinsky, ontem, nas redes sociais.
De olhar inteligente e curioso, Mafalda ganhou vida nos traços de Quino e se multiplicou pelo mundo não apenas como uma personagem de histórias em quadrinhos, mas como espelho da natureza humana. A garotinha fã de Beatles, que detesta sopa e questiona os problemas sociais do mundo é, até hoje, o desenho latino-americano mais vendido. Suas histórias, ao lado de Manolito, Susanita, Guille, Felipe, Liberdade e Burocracia, foram traduzidas em mais de 30 idiomas e receberam premiações importantes para a cultura, como o Prêmio Príncipe das Astúrias de Comunicação e Humanidades, em 2014.
Nascido em 1932, em Mendoza, na Argentina, Quino será sempre associado ao universo de sua criação mais famosa. Contudo, o artista deixa mais do que duas mil tirinhas e muitos desenhos. “Quino é um artista que nos deixou uma grande obra de presente, uma grande obra-prima que abraça a cada uma das pessoas que se encontram com Mafalda. Quino nos deu um espelho para nos olharmos e encontrarmos nossas dúvidas e nossas certezas, nossos medos e nossas esperanças”, comenta Sabina Villagra.
Na comemoração dos 50 anos de Mafalda, há seis anos, o Brasil recebeu a exposição O mundo segundo Mafalda. Com curadoria da argentina Sabina, a mostra, que recriava o universo de Mafalda em objetos e tirinhas de maneira interativa, percorreu diversas cidades argentinas e países como Chile e México. Com quase duas mil tirinhas criadas, em 1973, Quino decidiu que não desenharia mais Mafalda.
Apesar de a escrita ter parado ali, a representatividade dos traços do autor, bem como a grandeza dos personagens que criou nunca teve uma interrupção. A atualidade, sobretudo de Mafalda, é uma das características destacadas por Sabina, diretora do Museo Barrilete. “Segue sendo nosso referente, porque Quino, com sua grande habilidade, soube interpretar e traduzir em um desenho a natureza humana, cada uma das formas de olhar o mundo. Por meio da Mafalda e de cada um dos integrantes de sua família e do seu grupo de amigos, todos nós estamos ali refletidos”.
Por mais que a personagem, os questionamentos trazidos por ela e a personalidade da menina sejam usados no contexto infantil, a curadora reconhece que a criação de Quino é universal, sendo descoberta por novas gerações e redescoberta pelos fãs. “É para todos. Todos os que sabem olhar-se e interpelar-se, e nos mostra aspectos essenciais: a paz, o amor, a política, o meio ambiente, a família, o futuro. Tudo o que vivemos no dia a dia, por isso sua importância”, comenta Sabina. Na despedida do argentino, ela reconhece a honra e o trazer de ter trabalhado com o cartunista.

Influenciador de gerações

A morte de Quino fez com que ilustradores e cartunistas brasileiros prestassem homenagens ao artista e celebrassem a importância dos trabalhos, que ficaram marcados pelos traços, mas também pelas mensagens políticas. O pai da Turma da Mônica, Mauricio de Sousa foi um deles. Em nota divulgada à imprensa, com o título “Quino vive”, lembrou que Mônica e Mafalda eram contemporâneas, assim como eles. As duas, inclusive, estiveram juntas no aniversário da personagem de Quino, que completou 50 anos em 2015, em uma arte feita pela dupla, momento em que os dois também se encontraram.
“O amigo Quino está agora desenhando pelo universo com aqueles traços lindos e com um humor certeiro como sempre fez. Criou sua Mafalda, hoje de todos nós, no mesmo ano em que eu criei a Mônica, em 1963 (ano em que a personagem de Quino nasceu para uma campanha publicitária, apesar de ter estreado mesmo em 1964, data que ele preferia usar). Por isso, nos tornamos irmãos latino-americanos para desbravar o mundo dos quadrinhos. (...) Uma pessoa dócil e um dos maiores desenhistas de humor de todos os tempos. Quino vive agora mais forte dentro de nós”, declarou Sousa.
O trabalho do argentino influenciou gerações de ilustradores e cartunistas, se tornou símbolo contra a opressão. “Todo mundo que desenha foi influenciado por Quino”, define Kleber Sales, ilustrador e chargista do Correio Braziliense. Ele conta que o primeiro contato que teve com o trabalho do argentino foi com as tiras e os cartuns. “Eu fiquei muito impressionado, tanto com o desenho, que é muito perfeito e expressivo e praticamente todo em preto e branco só com nanquim mesmo, mas com a linguagem. Ele era universal, consegui tocar as pessoas com ideias muito afiadas e opinativas”, avalia.
Sales afirma ser uma perda “sem tamanho” pelo fato de Quino ter sido um dos maiores cartunistas do mundo. “A arte dele rodou o mundo. Com certeza, ele abriu portas, tanto nos quadrinhos, quanto nos cartuns. Ele teve um alcance e fazendo isso com um tipo de humor meio triste sobre a vida, mas popular e muito politizado. Ele trouxe discussões muito sérias sobre liberdade, política, também falava de música. Era um fã dos Beatles, desenhava os ouvindo. Ele era incrível”, completa.
A força política também é um dos pontos que o ilustrador e quadrinista Caio Gomez, integrante do time do Correio, destaca sobre Quino. “Ele foi um visionário. Ele tinha uma visão moderna da sociedade, falava de tudo que falamos hoje: o feminismo, os novos modelos de família. Ele foi tão atual no que fez, que repercute até hoje. E se pararmos para pensar ele parou de fazer a Mafalda em 1973”, comenta.
Gomez revela que a inserção dele no mundo dos quadrinhos impresso ocorreu muito pela chegada das edições de Mafalda no Brasil no fim dos anos 1990 e início dos 2000. “Ele foi uma referência gigante. Durante a minha adolescência e até no meu trabalho no Correio foi muito influenciado pelo Quino. Ele sempre teve essa visão questionadora e trabalhos abrangentes. Ele é o professor na América Latina do grande cartunismo político e dos quadrinhos. Ele foi um gênio e um orgulho para a América Latina”, complementa.
Pedro Sangeon, ilustrador brasiliense conhecido pelo nome de Gurulino, conta que as primeiras sensações com a notícia são a tristeza e o vazio da perda de referências em um momento tão importante. “Ele, sem dúvidas, é uma inspiração muito importante e para nós, ilustradores e quadrinistas da América do Sul, muito mais. Ele vai muito além de um gênio da profissão, ele inspira a gente a viver melhor, a enfrentar as dificuldades que é ser da América do Sul, a descrever a história da nossa realidade”, avalia.
Para Pedro, o cartunista argentino documentou de maneira versátil e criativa a realidade e a história da América do Sul e isso é um dos legados do artista que permanecem vivos. “Ainda que a gente tenha essa sensação de perda, que é inevitável, de tristeza, de sentir que o mundo fica um lugar menos inspirador, a obra fica e a obra é maior, é uma ferramenta de transformação, é escola, é um documento muito lúcido de uma América do Sul muito mais real. E ele criou tudo isso de forma poética e leve”, acrescenta.
Ao trazer para o desenho críticas sociais, questões ambientais, angústias humanas, Quino o fez com certo humor e esperança. “Ele tinha essa nobreza de lidar com uma realidade muito dura, mas sempre trazendo um caráter de humor, lembrando a gente que a vida é muito maior que isso. É uma pessoa que deixa uma obra imensa e uma dimensão muito grande de benefícios”, comenta Sangeon. Apesar da perda e da tristeza, o brasiliense avalia que uma nova geração poderá conhecer o trabalho do argentino. “Algo muito importante, principalmente, neste momento”.