“O momento da quarentena foi e está sendo de privações de transitar, de trabalhar, de encontrar pessoas. Além de estarmos vivendo, no país, um momento de retirada de liberdade. Essa música se dá concomitante ao processo no Brasil em curso de cerceamento, de autoritarismo. Só que, de alguma maneira, é uma forma otimista, esperançosa e mobilizadora. Trata-se disso.” É assim que o cantor e compositor Nando Reis explica o mais recente trabalho, o single Espera a primavera, o primeiro material inédito em dois anos.
A canção foi escrita durante o isolamento social que o artista cumpriu por quatro meses ao lado da esposa e dos filhos na casa que era do avô, em Jaú, no interior de São Paulo. A faixa nasceu reunindo todos esses sentimentos do compositor em meio à quarentena e à situação política brasileira. “Ela foi feita a partir daquilo que fui sentindo e pensando durante e sobre a quarentena”, explica.
Apesar de ter brotado do que Nando Reis define como um “inverno tenebroso que ainda está em curso”, Espera a primavera tem a mensagem de esperança, daí, inclusive, o título que vem da estação associada ao reflorescimento e que teve início no país na última terça-feira. Na letra, muito do que se sente falta na pandemia em trechos como “se apronta que no fim das contas/na outra ponta vai ter alguém/para lhe dar a mão” e “quando o sol de ouro/voltar a brilhar/ e o mundo todo/em alvoroço puder de novo/se encontrar”.
Mesmo que tenha sido feita por Nando isolado, Espera a primavera é uma música com várias participações (remotas). Vocalmente, além do compositor, a cantora Céu e o filho, Theo. Lulu Santos, Jack Endino e Walter Villaça ficaram responsáveis pela gravação das guitarras, ao mesmo tempo pesadas e harmoniosas. Chris Robinson, do The Black Crowes, e Sebastião, outro filho do artista, fizeram os acordes de violões. As linhas da bateria foram compostas por Barret Martin; enquanto a percussão, por Pupillo Oliveira, o baixo por Felipe Cambraia, e os teclados, por Alex Veley. Os arranjos de metal foram escritos por Tiquinho.
“Juntei representações daquilo que a música aspira dentro do meu círculo de amizades. São pessoas que admiro com quem nunca havia trabalhado”, diz. Ele explica que tudo começou com o riff criado que logo imaginou ser tocado por Lulu Santos. Já o refrão da faixa, pensou que poderia ser cantado por uma mulher, assim veio a ideia de Céu. A presença dos filhos é natural, já que ambos têm tocado com ele. Zoé é outra filha que participa, mas na versão do clipe. “Isso é só uma amostragem daquilo que é diversidade, não em sua totalidade. A música também é uma defesa à diversidade, à pluralidade, daquilo que é multicolor e surge num momento em que estamos num Brasil acinzentado, literalmente, pela quantidade de fumaças que cobrem os céus, e por esse governo inominável”, completa.
A canção será apenas um single. Não há intenção de fazer um álbum. Pelo menos, não agora. “Tenho muitas músicas, mas não é o momento de gravar e lançar um disco”, explica. Antes da pandemia, ele tinha uma agenda de shows da turnê do disco Não sou nenhum Roberto, mas às vezes chego perto, com canções do rei Roberto Carlos, que, inclusive, passaria novamente por Brasília. “Ainda quero produzir o vinil desse disco”, afirma, deixando evidente que pretende continuar a explorar o material.
Pandemia
Assim que a quarentena foi decretada, Nando Reis se isolou na casa em Jaú. Ele, a esposa e quatro dos cinco filhos. “De algum modo, posso imaginar que uma coisa boa aconteceu. Acabei de comprar essa casa que foi do meu avô e o fato de nos mudarmos para lá trouxe essa convivência inesperada e muito boa, com filhos adultos, casados, que não moravam conosco há 10 anos. De certa maneira, o que a gente fez foi tentar lidar com a realidade e extrair dela o melhor possível. Obviamente que eu tinha condições muito boas. Mas isso também não significa que não tenha sido duro”, comenta.
Para Nando Reis, as maiores dificuldades foram ver a equipe sem trabalho e assistir à tragédia de mortes diárias no país. “Além de todas as coisas horrorosas que andam acontecendo. Tudo isso é muito triste, muito perturbador. Lidar com tudo isso foi um tanto intenso”, complementa.
Mesmo assim, o artista mostra-se esperançoso. “Digamos que a esperança é uma coisa nata do ser humano. A humanidade, ao menos as pessoas lúcidas e sensatas que agem através da ciência, estão torcendo a favor da descoberta da vacina. Mas ,não basta apenas a descoberta da vacina. A vacinação é um processo complexo e estamos nas mãos de gente inepta e, digamos, incompetente, para dizer o mínimo. Mas nos resta olhar para os caminhos, nos apegar às direções e ter esperança para que a maioria saia desse surto que se deu”, reflete.
Reinvenção
Assim como alguns artistas, Nando Reis reinventou-se na quarentena, fazendo lives e apresentações em drive-ins. “Tem sido uma experiência inédita e que às vezes é difícil, mas, por outro lado, é gratificante ter conseguido trabalhar, produzir, gerar e dar trabalho para as pessoas numa situação tão desfavorável”, comenta.
Ele diz que esse processo tem mudado a relação dele com os shows. “Se você me perguntasse há oito meses sobre um show num drive-in, eu diria: “do que você está falando?” Ninguém nunca imaginou. Isso mostra que as pessoas, quando estão privadas, tentam encontrar meios de resistir e sobreviver. A arte é essencial, assim como o trabalho e a saúde. Há de se conjugar tudo isso e trabalhar e lutar para ter uma adaptação e extrair o que há de melhor”, define.
O mais recente show virtual foi na última sexta-feira ao lado da pernambucana Duda Beat. Na oportunidade, uma fusão entre o trabalho e a sonoridade dos dois artistas. Não há nada combinado oficialmente, mas Nando não descarta que a parceria possa dar frutos: “Talvez, quem sabe, a gente não insiste e lance algo”.
Essa não é a primeira vez que Nando se aproxima das novas gerações. Neste ano, ele lançou um trabalho com o duo Anavitória, que já havia revisitado o repertório dele em um álbum. “É muito legal (essa aproximação com a nova geração). Fico feliz de que meu trabalho tenha impactado outras pessoas contribuindo para a formação delas. Isso também é mais uma demonstração de que a música que eu fiz sensibiliza as pessoas mais novas. Ela permanece atual, como eu sempre pretendi que ela fosse, que não ficasse restrita à época de composição. Fosse atemporal, como a arte pode e deve ser”, analisa.