Há 47 anos, durante todas as noites, uma grande tela de cinema ao ar livre, com um letreiro luminoso e um amplo estacionamento lotado de carros integram a história da capital e ocupa um pedaço do Autódromo Internacional de Brasília. O Cine Drive-in reúne lembranças de décadas em um só local. Até o começo do ano, o lugar era raridade: o último cinema a céu aberto do país e único da América Latina.
Desde 1975, Marta Fagundes tem uma ligação com o local que conheceu aos 15 anos. De funcionária, tornou-se administradora e, em seguida, proprietária do cinema que é patrimônio cultural da cidade. “Dois anos depois da inauguração, eu e meu pai viemos trabalhar aqui. Na época, eu fazia o segundo grau, então não ia todo dia”, relembra Marta, que aos fins de semana distribuía balinhas e cupons de refrigerante na portaria. Enquanto o pai, Jair Fagundes, administrava o Cine.
Tempos depois, ela assumiu a função do pai, mas foi em 1988 que a jovem usou todas as economias e vendeu o carro para comprar o cinema. “Tive que correr atrás de uma sociedade também, porque faltava um pedaço do projetor e era muito caro. Ficamos seis meses fechados. Esse foi um dos piores momentos, voltamos a funcionar, mas até conseguir conquistar os clientes foi difícil”, conta a proprietária.
Desde então, o cinema vem competindo com os avanços tecnológicos. O surgimento de videocassetes, do DVD, da tevê a cabo e dos serviços de streamings diminuiu a frequência do público no local. “Quando inauguramos, Brasília tinha 11 cinemas. Hoje, tem mais de 80. Então, o Drive-in acabou ficando meio esquecido nesse mundo de shoppings e complexos, e cada vez que abria um novo cinema, ficava mais difícil da gente marcar filmes novos, por que, na época, era película, então tinha que esperar um cinema terminar de exibir, para a gente pegar e exibir aqui”, pontua a proprietária que tocava o local apenas com os filhos e com a operadora projecionista.
Para manter o lugar, Marta se afundou em dívidas. Em alguns momentos, o Cine Drive-in chegou a exibir filmes para apenas dois carros, mas tudo mudou depois de uma reportagem do Fantástico, em 2011. “Marcelo Canellas passou uma semana inteira gravando no Drive-in, isso deu um 'boom', a gente voltou com tudo. E, na época, estava estreando Somos tão jovens e Faroeste caboclo, filmes que alavancaram o nosso cinema”, garante a administradora do local.
Curiosidades
O último Cine Drive-in
Em um mix com a ficção, a história de Marta e do Cine Drive-in de Brasília foi narrada no filme O último Cine Drive-in (2015), do brasiliense Iberê Carvalho, disponível no serviço de streaming Netflix. O longa-metragem estreou no local que dar nome à produção e extrapolou a capacidade de público. “Eu nunca vi tanta gente dentro do meu cinema. Tinham mais de 300 pessoas sentadas no chão, por que elas queriam ver o filme e não tinha mais lugar para estacionar o carro. E daí pra frente, ele cresceu e virou outro cinema”, destaca.
Patrimônio Cultural e Material do DF
Em 2017, o Cine Drive-in de Brasília foi tombado como patrimônio cultural e material do Distrito Federal. O projeto de lei foi de autoria da deputada Luzia de Paula, que defendeu a iniciativa ao justificar que o cinema foi edificado no início da década de 1970 e seguia funcionando. “A deputada Luzia de Paula comprou a minha história e fez o projeto de lei. Tenho uma eterna gratidão pelo o que ela fez, se não fosse isso, o Cine Drive-in já teria saído daqui por interesse de outras pessoas”, afirma Marta.
A volta
Atualmente, o modelo drive-in é um dos meios de entretenimento seguro durante a pandemia do novo coronavírus e reafirmou a prática tão comum dos anos 1970 e 1980. E não foi diferente com o cinema ao ar livre mais antigo da capital que, diariamente, lota o estacionamento do local. “Eu nunca esperei que uma pandemia acontecesse, eu fiquei 40 dias fechada, achei que ia quebrar. Também nunca achei que o cinema fosse ser valorizado em um momento tão difícil do país”, declara Marta.
“O Cine cresceu e hoje é muito procurado pelos clientes. Agora, o problema é outro, estamos com dificuldades de atender todo mundo. Quando fazemos outros eventos, os espectadores reclamam. Eu não sinto falta de nada da época de 1970, por que agora está muito melhor, hoje nosso cinema é muito mais moderno”, finaliza.
Eles amam o Cine Drive-in
Orgulho
A história de amor de Thays Fernandes, 33 anos, e de Tardelle de Jesus, 40, teve o estacionamento do Cine Drive-in como cenário. Frequentadora assídua do local, a jovem apresentou o cinema ao marido, na época namorado. “Eu tinha o costume de frequentar o Drive-in antes de começar a namorar, mas, depois que começamos a namorar passamos a ir com uma frequência um pouco maior, íamos a cada dois meses.”
O local que marcou tantos momentos bons e até algumas discussões de relacionamento inspirou o morador de Águas Claras a pedir a namorada em casamento em 2016. “Antes do filme começar, ele fez a exibição na tela do cinema para todo mundo ver com uma declaração dele pra mim, com uma montagem de fotos e tudo mais, e no fim ele me pediu em casamento lá”, relembra Thays que considera o Cine Drive-in “um puxadinho da casa” dela.
Namoro
Carolina Nogueira, 20 anos, e João Guilherme Casalecchi, 21, também têm um grande apreço pelo cinema ao ar livre mais antigo da capital, onde marcou o segundo encontro do casal. Segundo eles, o Drive-in é só vantagem. “Pra começar, é preciso dizer que não é só um filme né? Você paga o ingresso uma única vez e pode ver todos os filmes daquele dia. Outro diferencial é poder falar à vontade sem se preocupar em incomodar os outros, para a gente isso é essencial, porque metade da diversão é comentarmos o filme juntos”, conta a estudante de serviço social.
A fila quilométrica antes do início da exibição do filme também é especial para os brasilienses. “Eu estava um pouco em dúvida sobre se já estava na hora de pedir a Carol em namoro, e eu não sei disfarçar quando estou com algo na cabeça. Por isso quando paramos na fila começamos a conversar sobre e ali eu confessei que estava querendo pedi-la em namoro”, relembra João.
Descoberta
O estudante de publicidade, Guilherme Tavares, 22 anos, começou a frequentar o local há pouco tempo, mas afirma que se divertiu bastante e gostou do ar vintage do cinema. “Fui umas 10 vezes, com certeza voltarei a frequentar após a pandemia. É mais barato que o cinema convencional e possibilita uma experiência retrô. Além de manter nossa cultura ativa”.
O jovem ainda garante que o local proporciona uma boa experiência tanto sozinho quanto acompanhado. “Tive um encontro com um boy lá e foi incrível de romântico, mas também já fui sozinho e é bem relaxante”, descreve.
Infância
Desde criança, durantes os anos 1980, Janaína Rosa, 39 anos, frequenta o cinema do Autódromo. O passeio fazia parte da rotina da moradora do Plano Piloto com o pai, que fazia questão de explicar para a filha como o local funcionava. “Não sei se estou enganada, mas acho que era um alto-falante do lado de fora do carro e tínhamos que emparelhar a janela do carro para ouvir. Hoje em dia, com a inovação, tem uma estação de rádio específica de lá, é o máximo”, conta.
Para ela, o Drive-in tem sabor de infância. “Adorava os lanches, a possibilidade de comer vendo o filme. Acho que isso não tinha no cinema convencional antigamente. Eu sou muito apaixonada por Brasília e tenho muitas memórias afetivas. Cada pedacinho dessa cidade significa e tem importância pra mim”, finaliza.
Nostalgia
Fernando Linhares, 48 anos, já perdeu as contas de quantas vezes foi ao lugar. O carioca que mora em Brasília frequenta o cinema desde a década de 1990. Para ele, a maior vantagem é a atmosfera do passado e da nostalgia. “Ir com as minhas filhas e ver desenhos com o carro cheio de pipoca é uma das lembranças que eu tenho do local”.
“Eu adoro o autódromo, acho o lugar histórico, mas é muito malcuidado pelo governo. O Drive-in era o último do Brasil até a pandemia. Quando acabar, provavelmente, voltará a ser o último de novo”, critica.
*Estagiária sob a supervisão de Igor Silveira