A banda goiana Carne Doce lançou, nesta sexta-feira (18/9), o quarto álbum da carreira, Interior, disponível nas principais plataformas de música. As 12 faixas inéditas se mantêm fiéis ao característico indie rock da banda, mas agregam uma diversidade maior de estilos, como dub, reggae, samba e trap.
Na temática, o disco é permeado por assuntos pessoais como saudade, romance, relacionamento, resiliência, sonho e reflexões sobre a natureza humana. Há espaço também para comentários sobre a sociedade atual, como em Fake, que fala sobre as contradições de um mundo com excesso de informações e tecnologia, e Hater, sobre o ódio nas redes sociais.
Para Salma Jô, cantora e letrista da banda, trata-se de um álbum mais positivo e leve do que os anteriores. “É um álbum mais solar, generoso e amigável do que os outros, que são mais noturnos, escuros”, avalia. Ela ainda avalia ser o melhor disco do grupo, que revela como a Carne Doce atingiu a maturidade. “Ele é o melhor em relação aos outros, porque a gente sente que se aprimora e esse é o resultado: um disco bom de uma banda que se encontrou e agora tem muita experiência”.
“A gente está se sentindo maduro, se sentindo bem onde está, sabendo as nossas limitações e qualidades, vendo o que fizemos bem e o que ficou na nossa identidade, sabendo onde a gente é e como a gente é. Uma serenidade e maturidade. O tipo de arte que você faz ao se sentir confortável com isso”, descreve. “Esse conforto acaba te deixando em uma zona de conforto e você acaba não criando coisas mais experimentais, mas a gente não tem mais essa vontade”, afirma Salma.
O título, para além das abstrações, remete ao conflito de sempre ser retratada pela mídia como uma banda de rock goiana, embora isso não se reflita na sonoridade. “A gente sempre foi tachado, mas a gente nunca localizou o que era goiano na nossa música. O aspecto de sermos do interior era o que nos classificava. Então, era mais o ambiente, a localização geográfica, de sermos do berço do sertanejo, que tem o maior frigorífico do mundo e essas coisas todas”.
A capa do disco sintetiza essas construções e avaliações: um pequi, fruta tipicamente goiana, cortado ao meio, com a polpa dourada e o caroço espinhoso à mostra. “A gente associa com o sol. Tem o livro do Jodorowsky, O caminho do tarô, no qual ele fala do Ás de ouros, e a gente adorou essa ideia porque a figura da carta parece o pequi, e a descrição do texto é muito próxima do que a gente tinha pensado. A gente pensou em coisas radiais como estrela, flor, sol", explica a artista.
Quarentena
O álbum começou a ser produzido antes da quarentena, mas a pandemia atingiu em cheio o processo de produção e adaptações se fizeram necessárias. O disco estava anunciado e alguns singles foram lançados, mas o restante do álbum teve de ser produzido de forma espaçada, entre março e agosto, no estúdio Up Music e a casa dos integrantes. “Uma gravação que ia acontecer em uma semana a gente fez picada”, detalha Salma.
O processo de produção deixou marcas no disco. “O timbre da minha voz muda, porque gravei ao longo do ano, então eu estava diferente. A energia mudou ao longo da pandemia. Ficar deprê, depois desiludido, depois chutar o balde, mudar tudo. E essa dificuldade de não ter mais ensaio. Tivemos que resgatar de memória qual era a energia de tocar junto como banda. Mas acabou parecendo um disco menos monótono, mais diverso”, avalia.
Amor e ódio
Na terça-feira, a Carne Doce lançou, de surpresa, o single Hater, que comenta o fenômeno do ódio nas redes sociais. Para quem está a par das polêmicas com a qual a banda se envolveu há dois anos, é inevitável associar a música com essa passagem biográfica. Na época, eles viveram um processo de linchamento virtual e cancelamento por conta das acusações de estupro contra o antigo baterista, e o fato de não terem afastado o integrante da banda logo que souberam do caso, fazendo-o apenas no final daquele ano.
A narrativa da música estabelece uma relação paradoxal entre os odiadores e os odiados, em versos como os do refrão: “É o meu covarde predileto/ Meu hater de estimação/ Que me adora pelo inverso/ Me odeia com adoração”. Salma explica que a música não é uma resposta direta aos detratores da banda, mas parte da situação: “Tem relação com isso, porque ela é um desabafo. Mas não é uma resposta, porque não explica a situação, não explica a história".
A música se baseia, em parte, nas observações da banda sobre o fenômeno do linchamento virtual. “Vivendo essa experiência, a gente aprendeu como acontece o ódio na internet e como ele acontece mais do que qualquer coisa. As pessoas usam uma situação de injustiça para capitalizar com o ódio, com calunia, ganhar capital simbólico no meio que elas frequentam, às custas de alguém", analisa Salma. “Tem gente que compartilha como se fosse uma brincadeira. Às vezes nem é conscientemente, mas o ambiente virtual favorece isso. A música reflete essa percepção, mas também como o ódio afeta a gente, que é odiado. O ódio apaixona. Você às vezes se sente no espelho, como se o fato da pessoa te odiar fosse porque ela tem um problema de autoestima, e você tem um problema de autoestima. Elas te odeiam dentro de uma cena em que ela se identifica, esteticamente, politicamente. São sentimentos dúbios, estranhos, ambivalentes, tanto pensando no lado de quem é odiado quanto de quem odeia. Eu sei que que já circulei dos dois lados", conclui.
Apesar de todo o amadurecimento da banda, Salma confessa que, nesse aspecto, os membros ainda não aprenderam a lidar com a situação. “A gente foi caluniado. Essa é minha impressão até hoje. Eu não mudei. As acusações que fazem sobre a gente são falsas e eu já senti muita angústia de provar minha inocência, sofri por tentar me defender no ambiente virtual. Eu nunca me arrependi das minhas atitudes. Nunca me arrependi do que eu fiz de verdade. Eu me questiono, às vezes, sobre qual estratégia devo abordar para me defender na internet, para não ser trouxa, para defender a minha dignidade e não deixar que as pessoas me desrespeitem. Isso é difícil calcular. Não sei se o melhor é ignorar ou responder. Eu ainda não amadureci em relação isso".
*Estagiário sob a supervisão de Roberta Pinheiro
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