“A partir do momento que você aprova uma lei dessas, você não discute arte”, afirma a performer Maria Eugênia Matircardi, que também é professora da Secretaria de Educação e doutoranda em artes visuais na Universidade de Brasília (UnB). Maria Eugênia faz referência ao projeto de lei nº 1.958/18, que foi aprovado em primeiro turno no plenário da Câmara Legislativa do DF e proíbe manifestações artísticas e culturais com “teor pornográfico” ou vilipêndio a símbolos religiosos em espaços públicos do DF.
Para valer como lei, a proposta, de autoria do presidente da Casa, Rafael Prudente (MDB), precisa ser aprovada em segundo turno na próxima semana e passar pela sanção do governador Ibaneis Rocha. Contudo, a proposição motivou reação da classe artística de imediato. A performer Maria Eugênia Matircardi ficou chocada com a aprovação do texto. “Não só eu, mas a classe artística e qualquer pessoa sensível aos pressuposto básico dos valores democráticos”, avisa. “Esses dispositivos (do PL) têm o objetivo de destruir a força do pensamento crítico indispensável à democracia.” Para ela, questões que tenham o corpo humano como objeto de reflexão e pensamento mobilizam campos de força e tensionam questões morais de sexualidade, tabus religiosos e um certo sexismo construído dentro do imaginário social. A artista defende que existe um abismo enorme entre nudez artística e o que é chamado de pornografia. “São coisas muito diferentes”, explica.
Para Maria Eugênia, confundir pornografia com nu artístico pode levar a pensamento absurdos. “Se a gente for pensar em nudez na história da arte e aprovar uma lei dessa, sequer vai poder ter anjinhos barrocos em uma igreja porque seria considerado pedofilia. Não teríamos a maior parte das obras gregas, o Davi de Michelangelo, nada. Teria que evitar entrada em parques rupestres, porque mostram cenas de nudez e sexo”, diz a artista, autora de performances nas quais o corpo nu é um vetor de discussão política e social.
Maria Eugênia também aponta o PL como repleto de inconstitucionalidade e de afronta ao pensamento democrático. “Primeiramente, eu acredito que a democracia não vai existir sem a livre participação e liberdade de expressão, o pensamento crítico não sobrevive se esse direito constitucional for aniquilado”, diz. “É uma proposta que fere o artigo 5º, inciso IX, da Constituição Federal. Em um país como o nosso, em que quase um quarto da população é analfabeta, que tem uma depredação do projeto das políticas públicas de educação em que a gente não consegue nem qualificar o debate, fica difícil discutir arte contemporânea, filosofia, qualquer tema relevante, porque a gente está ainda tentando provar que a terra é redonda”, lamenta a artista.
“Censura. Retrocesso. Inconstitucionalidade. Estupidez”, assim define o artista plástico, doutor em Arte Contemporânea e professor dos cursos de graduação e pós-graduação em Artes Visuais da UnB, Christus Nóbrega. Assim como Maria Eugênia, Nóbrega pontua a relevância e o papel da arte no processo educativo e de construção democrática. “A arte nos faz pensar. Diante de uma obra estamos diante de uma série de perguntas – muitas delas bem incômodas. A arte nos apresenta outros universos para que possamos pensar melhor sobre os nossos próprios e assim pensar sobre o passado e as possibilidades do futuro. Ao privar o público de ter contato com determinadas perguntas e outros universos, eles estão privando a sociedade de refletir sobre si própria. Uma atrocidade que só regimes totalitários estão dispostos a promover”, avalia. “Somo um país violento. Cada vez mais matamos e violentamos corpos por preconceito e ignorância. Censurar discussões que a arte pode promover sobre o corpo é alimentar a violência brasileira. Estupro, feminicídio, racismo, lgbtfobia, entre outras violências, são causadas, principalmente, por preconceito e tabu sobre o corpo. O corpo não precisa ser temido, mas sim celebrado”, completa.
Lacuna histórica
Se levar ao pé da letra o que está escrito no PL, trabalhos de diferentes períodos e movimentos artísticos não poderiam ser expostos em Brasília. Isso porque o texto associa como teor pornográfico “expressões artísticas ou culturais que contenham fotografias, textos, desenhos, pinturas, filmes ou vídeos que exponham o ato sexual e a performance com atrizes ou atores desnudos”. E, no caso dos símbolos religiosos, “elementos, objetos cultuados pelas diversas matrizes religiosas que representam o sagrado e a fé de seus seguidores”.
Sendo assim, dos Renascentistas, passando por pinturas de Victor Meirelles que retratam o processo de colonização e catequização dos índios brasileiros, por Picasso, Frida Kahlo, Ceschiatti, Rubem Valentim, até nomes mais contemporâneos como Marina Abramovic e Vik Muniz, o conjunto de artistas seria imenso. “O primeiro impacto que você tem é que aquele trabalho não será exposto, você não terá esse trabalho nas coleções públicas. Haverá um gap histórico com relação a determinada produção e a um determinado período histórico”, avalia a artista Gisel Carriconde Azevedo, que, durante anos, trabalhou com o acervo do Banco Central. Gisel lembra como se formam as coleções públicas no Brasil e qual o valor dessas coleções tanto para os artistas, quanto para os pesquisadores. “Os gestores vão recusar obras que não se encaixam dentro da lei?”, questiona. “Para o artista, estar dentro daquela coleção do Estado é importante, aumenta o valor do trabalho e você tem certa garantia de que seu trabalho vai fazer parte da história da arte do país e atravessar gerações”, acrescenta.
Definições
Além disso, Ana Avelar, curadora da Casa Niemeyer, questiona, a partir da proposta, o que será definido como pornografia? E quanto aos símbolos religiosos? “Não cabe ao poder público censurar as manifestações artísticas, e até cria um outro problema que é quem vai dizer exatamente o que é pornografia, o que não é? Ou o que é adequado em termos de comentário religioso e o que não é? Não cabe ao poder público fazer esse tipo de avaliação, Os museus possuem conselhos internos e externos, há representantes da sociedade civil nesse conselhos, a gente já tem um diálogo com a sociedade permanente, não só quando abre a exposição. Os museus não são uma instituição à parte da sociedade, são uma instituição social.”
Vale ressaltar que, apesar de cair no universo das artes visuais, a proposta atinge a área cultural como um todo. “Vai ter que mexer em tudo, é uma censura generalizada. Vai ter que mexer nos conteúdos todos de cinema, de televisão, de teatro, de publicações. O que fazer com a história? Onde fica a história? Haverá borracha suficiente pra isso tudo? São muitas coisas ali. Primeiro que é uma generalidade. Há um grau de subjetividade (no PL). Não é uma designação que se explicite suficiente, de forma que passará a justificar uma ação intempestiva de algumas pessoas que, em determinado momento, poderão alçar aquela lei para impedir o acesso ou a visitação a algum acervo, ou a frequência a um museu ou espetáculo em nome da legislação. E censura prévia de uma legislação como essa dá munição a um gesto disseminado, não é objetiva, não se justifica, cria uma circunstância que pode justificar um gesto intempestivo”, comenta o artista plástico Ralph Gehre.
“Não se trata de chegar no sinal do trânsito, no meio da rua, e tirar a roupa, sem motivo!”, comenta o diretor Fernando Guimarães, que, ao lado do irmão, Adriano, contabiliza carreira de mais 25 anos. Indignado, ele conta nunca ter sido alvo de censura direta ou velada, mas, sempre ouviu aconselhamentos para aparar as arestas no fazer artístico.
O secretário de Cultura e Economia Criativa do DF, Bartolomeu Rodrigues, afirma ser absolutamente contrário ao PL e espera que a ideia não prospere no segundo turno. "O projeto fere a memória dos fundadores de Brasília. Uma cidade que, por si só, já é uma obra de arte. O ápice do modernismo no país. Em uma leitura rápida do projeto, acredito que seja inconstitucional. O Supremo Tribunal Federal (STF), por diversas ocasiões, já reiterou a posição de que não há nenhum tipo de censura no Brasil. E com relação à questão específica de nudez, o projeto demonstra uma falta de sensibilidade ao que significa arte. A finalidade da obra de arte, sem querer ser professoral, mas a finalidade é justamente não ter finalidade. É provocar emoções e ela atravessa o tempo. A arte é o único espaço do conhecimento humano em que a liberdade precisa ser completa. A liberdade não tem tranca", pontuou o gestor.
Deputados negam censura
Um dos defensores da proposta, o distrital Rodrigo Delmasso (Republicanos) afirma que o projeto não promove censura e é uma forma de proteger famílias e crianças. “Não é uma afronta à cultura, não quer dizer que isso vai proibir exposição em museu. O que está no projeto, e sou favorável, é que crianças e famílias não sejam expostas a nudez no meio da rua, onde todos passam e não tem como escolher não ir. Então, ele tem o direito de apresentar o nu dele e eu não tenho direito de não ver o nu cultural dele? Para mim, esse projeto garante todas as liberdades, tanto da maioria quanto da minoria”, concluiu.
Ele também questionou a posição de que clássicos da artes plásticas seriam enquadrados pelo texto. “Dizer que vai proibir obras de Michelangelo, por exemplo, é uma falácia. Acompanho essa discussão e sou um dos principais defensores, sou conservador com orgulho, para garantir o direito da maioria das pessoas que não acha adequado esse tipo de exposição no meio da rua e, em exposições, desde que tenha classificação indicativa”, argumentou.
Ao Correio, a assessoria do presidente da Câmara e autor da proposta, Rafael Prudente (MDB), informou que ele não estaria disponível para comentar o assunto e que os argumentos em defesa da proposta estavam na justificativa do PL, na qual o deputado pondera que é "fundamental diferenciarmos o que é uma expressão artística daquela em que o sexo explícito e as diversas formas de parafilia (pedofilia, sadomasoquismo, zoofilia, etc.) são expostos, os quais se constituem em atos que ferem, que atentam contra valores arraigados da sociedade brasileira".
Palavra de especialista
Mestre em direito constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), professora e advogada Denise Vargas
Esse projeto ele vai ao encontro de um pleito da ala conservadora da Câmara Legislativa, que é a preocupação de não ter sua liberdade de crença violada. No entanto, o texto está muito aberto e com conceitos muito indeterminados. Isso gera uma discricionariedade (conceito que permite ao legislador liberdade para determinar peso específico para valores constitucionais em caso concreto) absurda, o que viola o princípio da proporcionalidade. Além disso, o que é vilipêndio religioso para um pode não ser para o outro, sobretudo numa sociedade pluralista. Além disso, a liberdade de expressão também tem assento constitucional. Havendo aí conflito entre direitos igualmente constitucionais, a gente tem de usar o princípio da razoabilidade para resolver e esse projeto por essas questões, me parece desarrazoado e inconstitucional. Então, a probabilidade de ser questionado e considerado inconstitucional é grande.
Participaram da cobertura: Alexandre de Paula, Lucas Batista*, Mariana Machado, Nahima Maciel, Pedro Ibarra*, Ricardo Daehn e Roberta Pinheiro.
*Estagiários sob supervisão de Igor Silveira