Das coisas que aprendeu nos discos, o mais importante é o que Ana Cañas viveu. Entre o novo questionador e o muito antigo, difícil de desaprender, a artista mergulha em quem é para se expor ao público. Olha para o passado, interpretado por Belchior, e percebe que é presente. As canções do rapaz latino-americano Como nossos pais, Na hora do almoço, Mucuripe, Coração selvagem e Galos, além de noites e quintais servem como biografias autorizadas sobre a compositora. “Me comovem de um jeito diferente, bastante avassalador” pontua Ana Cañas, que confirmou, por Instagram, a gravação do álbum Ana Cañas canta Belchior.
Quando o assunto é composição, tudo ao redor atua na criação dos versos. Dos detalhes ao que é óbvio, a atenção está voltada para a rotina. “É sempre um mistério a amálgama humana, seus meandros, idiossincrasias. Tentar capturar essas esferas e traduzi-las em melodias e poemas sempre é um desafio imenso”, declara. Muitas vezes vista como a nova MPB, Ana Cañas responde que “é uma sigla que abarca muitas coisas indefiníveis e não exatamente um som”.
Em um mundo em que o que é viral gera valor, Ana Cañas segue o simples, realça a apresentação com Nando Reis, na canção Pra você guardei o amor, o lançamento das músicas, acompanhadas por clipes, Esconderijo e Respeita, a versão de Eu amo você (Cassiano), e a indicação ao Grammy no ano passado com o disco Todxs. A live realizada em homenagem a Belchior representa um marco no caminho musical de Ana.
Redescoberta
Em 1946 nascia, em Sobral, interior do Ceará, Belchior, que, mais tarde, seria reconhecido no país e também internacionalmente. De geração em geração, ainda conversa com artistas atuais. Ana Canãs fez uma live em julho deste ano, por meio de arrecadações entre os fãs, com o repertório de músicas do cantor cearense. A cantora confessa que não esperava receber tantas mensagens carinhosas, do país inteiro. “Sinto que muita gente ama o Belchior.”
“Decidi parar de lutar contra o meu preconceito bobo sobre me entregar ao lado intérprete”, diz a artista, em uma publicação no Instagram, na qual confirma a gravação do disco-tributo. Embora acreditasse que cantar músicas de outros artistas fosse mais fácil do que ir pelo caminho da autoria, a compositora revela que interpretar Belchior está entre as coisas mais difíceis que fez na vida.
A atemporalidade das canções do compositor cearense chamou atenção de Ana. “Eu acho que esse repertório está mais atual do que nunca, diante de tudo que vivemos nesse momento. Filosófica e existencialmente falando, parece que Belchior sabia para que lado caminharia a humanidade”, ressalta. “Não ficou datado, ele falou de forma mais universal.” acrescenta.
Rita Lee, Gilberto Gil e Caetano Veloso são outros nomes que têm admiração por parte da cantora, mas nenhum deles, segundo ela, causa o mesmo impacto do que a contemporaneidade das letras do cearense, por mais que também tenham sido compostas nas décadas de 1970 e 1980.
Pandemia
“Foi um momento em que eu vi muitas mudanças para todos nós da música, sem exceção.” Assim como outros músicos, ela migrou o trabalho para o campo digital. Antes de se pronunciar sobre o momento pandêmico, enquanto artista que depende de apresentações ao vivo, imaginou como isso soaria para as pessoas. “Existe essa cultura de que, talvez, o artista como eu, que não é mainstream, mas tem disco lançado, 15 anos de carreira e tudo mais, tenha uma vida confortável. Só que, na verdade, eu ainda pago aluguel, eu não tenho casa própria”, conta.
Desde o início da quarentena, fez em cinco lives gratuitas no Instagram, com músicas autorais, e, depois, com financiamento coletivo de quem acompanha a artista, o show especial em homenagem a Belchior, no YouTube, que também colaborou para a entrega de alimentos a pessoas em situação de rua em São Paulo.
Em relação ao estúdio durante a quarentena, Ana Cañas trabalhava, ainda no início, em demos para um disco novo autoral. Mas com o trilhar de caminhos e o encontro mais profundo com as obras e a ideia de gravar Belchior, as gravações, por enquanto, foram paradas.
Entrevista // Ana Cañas
Você fez uma live na pandemia em que revisitou canções de Belchior. Quais canções do Belchior mais conversam com você?
Olá, tudo bem? acho que todas rsrs. É muito difícil escolher uma / algumas. Acho que esse repertório está mais atual do que nunca, diante de tudo que vivemos nesse momento. Filosófica e existencialmente falando, parece que Belchior sabia para que lado caminharia a humanidade. Mas Como nossos pais, Na hora do almoço, Mucuripe, Coração selvagem e Galos, noites e quintais me comovem de um jeito diferente, bastante avassalador.
Por que escolheu revisitar a obra de Belchior agora? Tem outros artistas que você gostaria de fazer algo parecido?
Exatamente por esse motivo: a atualidade das canções, das letras. O universo lírico e subjetivo são complexos mas, ao mesmo tempo, simples e acessíveis. A emoção é latente porque Belchior é um compositor visceral, intenso, verdadeiro e completamente único. Amo Rita Lee, Gilberto Gil, Caetano Veloso mas acho nenhum deles me causa o mesmo espanto e diálogo contemporâneo (um assombro de genialidade) como as canções do Bel nesse momento em que vivemos.
A live sobre Belchior teve bastante repercussão. Você pretende transformar esse projeto em álbum, por exemplo?
Sim, existe uma ideia de gravarmos um disco. Foi tão emocionante esse show! Não esperava receber tantas mensagens carinhosas, do país inteiro. Sinto que muita gente ama o Belchior. Ainda me emociono muito ao receber mensagens de pessoas que estão vendo pela primeira vez ou reassistindo a live.
Em uma das lives que fez, celebrou os 12 anos de carreira. O que você destaca da sua trajetória na música?
É difícil escolher ou pontuar momentos porque, às vezes, algo que nos marcou pessoalmente não teve tanta relevância publicamente. Mas, escolheria Pra você guardei o amor (com o nando reis), Esconderijo, Respeita (música e clipe), a versão de Eu amo você do Cassiano (a música e o clipe também) e a indicação ao Grammy no ano passado com o disco Todxs. Esses são momentos bastante especiais pra mim. Acho que colocaria a live do Belchior também nesse conjunto, mesmo sendo realizada recentemente.
Quando você começou sua carreira, muitas pessoas falaram que você fazia parte dessa nova geração da nova MPB. Como você viu isso na época e como você se definiria?
Acho que é muito difícil definir a nossa geração - que possui muitas influências e que nasceu no cenário pós-internet, com a comunicação global e a consequente busca pelo rompimento de fronteiras. "MPB" é uma sigla que abarca muitas coisas indefiníveis e não exatamente um som. Talvez a influência dos violões de nylon, a escola do autor / compositor (em sua maioria, masculina) definam um pouco a sigla, mas isso mudou muito dos anos 1960 /1970 pra cá.
Você é uma artista também lembrada pelo lado compositora. Como é o seu processo de composição? E quais temas mais te inspira musicalmente?
A vida inspira. Ultimamente, coisas simples e corriqueiras. É sempre um mistério a amálgama humana, seus meandros, idiossincrasias. Tentar capturar essas esferas e traduzí-las em melodias e poemas sempre é um desafio imenso.
Você está com algum trabalho (CD, single) sendo feito na pandemia?
Ainda não, estava começando a gravar umas demos para um disco novo, autoral. Mas tudo bem no início, em fase de pré-produção. Com essa ideia de gravar o Belchior, deixamos em suspenso por enquanto.
O trabalho do artista sofreu impacto na pandemia. Para você, como tem sido rentabilizar em um cenário digital?
Muito difícil. Estamos sem trabalhar há quase 5 meses e sem nenhuma perspectiva de quando voltaremos. Não consegui patrocínio para fazer lives, mas levantamos esse show com financiamento coletivo e foi muito massa. Essa semana vamos entregar alimentos à pessoas em situação de rua aqui em SP com uma parte do dinheiro que recebemos. Foi um grande aprendizado pra mim nesse momento.
*Estagiária sob supervisão de Igor Silveira