Ao apostar no entendimento do povo brasileiro nos campos do mítico e das parábolas, e sempre promovendo inovação, o cineasta Glauber Rocha se afirmou na eternidade, como demarca Joel Pizzini, um dos maiores estudiosos do diretor brasileiro mais conhecido no mundo quando o tema é cinema. A cada década — desde a morte, no ano de 1981, quarentão — Glauber, como observa Pizzini, encabeça um “filme-vida” sem roteiro concluso. Segue, assim, como autor que tocava o coração das pessoas, a partir de “uma narrativa visceral, com método que provocava o transe”. Em 2020, mais uma reativação da genialidade de Glauber está nos holofotes, com a escolha do longa Antena da raça, dirigido pela filha dele, Paloma Rocha (em parceria com Luis Abramo), para seleção no Festival de Cannes. O filme, agregado à lista de clássicos do festival francês, será mostrado, em outubro, na cidade de Lyon.
Por duas vezes concorrente em Cannes, nos anos 1970 e 1980, o cineasta e crítico Arnaldo Jabor destaca que Glauber Rocha completou uma imagem geral do Brasil que não existia. “Trouxe miséria, sertão, cangaço, uma forma narrativa nova no cinema mundial; tudo que tinha sido apontado, na literatura, por Euclides da Cunha e Guimarães Rosa. Glauber transformou a fome numa estética. Caetano Veloso e cinema novo, e Zé Celso (Martinez Corrêa, o dramaturgo) são (alguns) filhos”, avalia. Não ao acaso, Caetano e José Celso aparecem no documentário de Paloma Rocha. “Glauber optou pela estética de conceber uma obra atemporal, com inquietações filosóficas, abordando temas existenciais (Deus e o diabo) com uma linguagem operística que transcendeu à temática regional. Dialogou com seu tempo, com a psicanálise e, no mesmo plano, com os célebres diretores Buñuel, Antonioni e Pasolini”, reforça Joel Pizzini.
Um patrimônio nacional
“Antena da raça não é um filme tributo e nem um filme sobre o passado”, apressa-se em detalhar para o Correio, Paloma Rocha. Ela concebeu o filme, em sintonia com o programa televisivo Abertura, exibido na extinta TV Tupi. No miolo do longa-metragem está a essência do pai, sempre preconizando conceitos como os da liberdade e rupturas. “Com a pandemia, acho que Glauber estaria recluso, cuidando da saúde. Mas, diante do pandemônio, ele reclamaria, justo o que é um pouco o conteúdo do filme. Trazemos a voz de Glauber para os dias de hoje, com questões que não mudaram muito. Há um debate sobre a luta de classes, o colonialismo, presente até hoje, e que permeia a obra dele, num diálogo com pessoas na rua”, explica a cineasta, sempre empenhada em preservar o legado do pai. Na montagem, o filme traz entrevistas, sem intermediações. Participam da obra personagens de filmes e populares, saídos das ruas. Num rompante, no novo filme, Glauber dispara: “Não quero saber de cinema: quero ouvir a voz do homem”.
Joel Pizzini relembra que, ao ser questionado sobre a dimensão popular de seu trabalho, Glauber respondia ‘uma coisa é conquistar o público, a outra é explorar o público’. “Glauber foi artista visionário, que através de filmes como Câncer, Claro e Idade da Terra antecipou linguagens incorporadas pela arte contemporânea como a performance e a instalação, sempre com uma perspectiva política e libertária”, completa o codiretor de Anabazys (sobre temas glauberianos).
Em nada as fofocas ou picuinhas encantavam o cineasta. Se vivo fosse, Paloma acredita que ele destituiria a estrutura de poder fracassada, numa escala não apenas de país, mas de mundo. Num jogo em que pessoas ocupariam uma espécie de tabuleiro social, em escala simbólica e intelectual, Paloma acredita que Glauber tenha criado personagens arquetípicos: um cara representa o poder; o outro, o negro; um terceiro personaliza o canalha. “Não há psicologismos burgueses. Nos filmes dele seria impossível ouvir: “Vamos ao shopping, querida? (risos)”. Glauber se detinha nas necessidades fundamentais ao homem. Tem um momento, no Antena da raça, em que ele diz: ‘Vamos acabar com esta loucura, com partidos, já que o povo precisa de educação, saúde e cultura. Glauber falava de modo simples num recado direto”, analisa a filha.
Figura de ponta da novidade e da revolução empreendida pelo Cinema Novo, Glauber se aplicou a, fora dos estúdios, filmar o povo, na rua, sem maquiagem. Também não gostava de retoques no perfil dele ou mesmo das exaltações em homenagens. Antes de ir para Portugal (numa jornada em que padeceu, em 1981), Glauber disse à Paloma: “Minha filha, nunca me mitifique”. “A relação com ele é sempre direta, sem intermediário. Para um povo que, aos números da pandemia, parece invocar apenas quantidade e estatística, Glauber seria atual voz de peso. No nosso filme, o negro que lava carros, hoje, é ainda o mesmo personagem de Antônio Pitanga (em Câncer, feito em 1968). Enquanto pouco se falava do sonho e das expectativas da massa, num artigo chamado Estética da Fome, Galuber cravava que ‘o povo é um mito da burguesia’. Se hoje as pessoas, em si, perderam o valor — como naquele recente caso do ‘porteiro’, sem nome, sem família e sem identidade —, Glauber sempre olhou as pessoas”, finaliza Paloma.